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O
corsário de Malabar
«(…)
Vendo-se descobertos, os piratas saltam dos esconderijos por baixo dos taipais,
a fazer grande surriada de gritos, estrondeando tambores e sinos, enquanto os
remadores lançam azeite e óleos sobre a carga de ramas cecas, inflamando-a como
uma tocha. Desamarram o barco e impelem-no contra o Babelmandel, no qual embate com estrondo, soltando uma nuvem de
fagulhas, e as chamas começam a lamber o quil dos panos e madeiras,
alastrando em labaredas pelo costado da popa enquanto o diabo esfrega um olho.
Os corsários desprendem os sete barcos, desmanchando a enganosa balsa e
mostrando-os como realmente são, sete paraus de guerra.
Rodeiam
a nau por popa e por proa com grandes apupadas, capeando ou esgrimindo
ameaçadores com as espadas de lâmina larga e curta semelhantes a terçados; em
modo de desprezo e escárnio, soltam os panos das suas vestes e mostram-lhes os
cus. Completam a surriada com uma chuva de pequenas lanças de arremesso e
pedras que escalavra muita gente e saúdam o lanço com grandes brados: eh, cães
danados! Vinde cá! Sois homens ou mulheres barbadas? Preparai-vos p'ra morrer! Queremos
provar as vossas mulheres, mouros capados! Os defensores são poucos para tanta
obra, correndo uns a apagar o fogo, outros a arremessar pedras e panelas de
pólvora sobre os paraus, outros ainda a rechaçar à zargunchada e a golpes de
espada os assaltantes que galgam pelo tabuado do navio como bugios por troncos
de árvore. Os mercadores e viajantes mais velhos, sem préstimo para pelejar,
são levados com as mulheres e as crianças para os repartimentos das
mercadorias, onde ficam a rezar e a aguardar o desfecho do ataque.
Todos
os homens válidos estão na tolda, prontos a defender as vidas, as famílias e os
bens. Pêro e Schaban, lado a lado, fazem as honras do combate, desferindo
cutiladas a quantos lhes aparecem pela frente e lançando-os ao mar. O escudeiro
defronta um malaio muito bom de peleja, que distribui e apara golpes como um
soldado. Quem é o teu chefe?, pergunta-lhe, quando as espadas se cruzaram de
novo e os rostos se acercam. Timoja, o flagelo dos mouros invasores da Índia!,
diz o homem, com orgulho, acertando com o punho da espada no rosto do
português. Maldito sejas, negro monturo! Pêro dá um salto com a dor e, por
instinto, faz girar a pesada espada de duas mãos, assentando uma cutilada no
adversário, que lhe corta o barrete de malha e lhe abre a cabeça em duas. O
homem cambaleia, mas, antes de cair, Pêro colhe-o pelos joelhos com um revés e
decepta-lhe ambas as pernas. É o teu herói do Malabar quem nos ataca, lança com
ironia a Schaban. Foi castigo de Allah, responde o moço, ao livrar-se de um inimigo,
por admirar os corsários infiéis. Parece que invoquei os demónios!
Os
corsários entram no Babelmandel como
uma vaga impossível de deter e alguns viajantes e matalotes feridos ou
queimados lançam-se à água, procurando atingir a costa, porém, cansados da
peleja e enfraquecidos pelos ferimentos, acabam por sucumbir. Lutas bem de mais
para um mercador! Não serás tu outra cousa? Pêro dá meia-volta e enfrenta o
novo opositor. É um malabar de pele clara, porte altivo e um rosto de nobres
feições, em tudo diferente da chusma comum às tripulações dos piratas. Está a
medi-lo com o olhar, mostrando genuína admiração, sem todavia descurar a sua
defesa. Venceste o meu lugar-tenente e isso é obra de mestre, pois Xemim nunca
tinha sofrido qualquer derrota em combate. Quem és tu? Timoja! Pêro põe-se em
guarda, dominando a surpresa de ver quão jovem é o capitão corsário. Sou um
mercador de Al-Andalus, replica, irado, ao ouvir atrás de si o gemido de
Schaban, que, acometido por dois assaltantes, tomba ferido. Mas tu és de nobre condição!
Por que razão nos atacas? Não sabes, perro mouro? A vossa raça invadiu a Índia
como uma praga de gafanhotos! Enquanto eu viver, pagareis essa ocupação com os bens
e mesmo com a vida. E tu, defende a tua, cão de Muhammad!, apregoa o corsário,
com igual sanha. Escaramuçam, terçando armas a fim de se avaliarem. O português
admira a agilidade do malabar, pelo modo como fere e se guarda dos golpes,
Timoja percebe, pela destreza do adversário, que se trata de um esforçado
guerreiro de muito saber e não de um simples mercador». Deana
Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do
Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT