terça-feira, 26 de abril de 2016

O Livro dos Perfumes Perdidos. MJ Rose. «Ao contrário das idosas companheiras, a Imortalidade era jovem, mas a serpente em torno da sua cabeça, a morder a cauda, estava mosqueada de manchas verdes e pretas de deterioração»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) Por duas vezes. Desde criança que coleccionava fitas e tinha caixas e caixas delas: de cetim, de gorgorão, de veludo, de catassol e jacquard, a maior parte descoberta em cestos cheios de galões em lojas de antiguidades. Havia seis metros e meio daquela fita de cetim creme numa bobina manchada de água e marcada Memorial Black. O condutor avançou pela estrada central do cemitério, até chegar a uma bifurcação, e aí virou à direita. De olho no familiar ornamento de granito com a forma de um orbe, Jac atou e desatou o comprido lenço branco ao mesmo tempo que o condutor percorria, vereda atrás de vereda, um infindável labirinto de lápides, mausoléus e monumentos. Ao longo dos últimos 160 anos, toda a família da sua mãe fora sepultada naquele cemitério vitoriano empoleirado numa cumeada sobranceira ao rio Pocantico. O facto de ter tantos familiares a dormir o sono eterno naquele luxuriante cemitério histórico fazia-a sentir-se estranhamente em casa. Desconfortável e pouco à vontade, mas em casa, naquela terra dos mortos. O condutor parou junto a uma pequena mata de falsas acácias, estacionou e deu a volta ao carro para abrir a porta a Jac. A sua determinação debatia-se com a ansiedade. Vacilou apenas por uns segundos e saiu.
Sob a sombra das árvores, Jac subiu os degraus do mausoléu ornamentado em estilo grego e tentou enfiar a chave na fechadura. Não se recordava de ter tido problemas antes, mas no ano anterior não se lembrava de ter visto aquele rio de ferrugem a emergir do buraco da mesma. Talvez o escatel estivesse corroído. Ao mesmo tempo que agitava o palhetão e empurrava, reparou que os espaços entre os blocos de pedra à sua direita estavam cheios de musgo. No lintel, três cabeças de bronze tinham já sido corroídas pelos elementos. Os rostos, a Vida, a Morte e a Imortalidade, observavam-na com sobranceria. Olhou para cada um deles enquanto sacudia a chave na fechadura. A corrosão que atacara a Morte suavizara-lhe ironicamente a expressão, em especial em redor dos olhos fechados. O dedo que a imagem segurava frente aos lábios, silenciando-os para sempre, esboroava-se de ferrugem. O mesmo acontecia com a sua coroa de papoilas, o símbolo do sono na Grécia Antiga.
Ao contrário das idosas companheiras, a Imortalidade era jovem, mas a serpente em torno da sua cabeça, a morder a cauda, estava mosqueada de manchas verdes e pretas de deterioração. Nada apropriado para um vetusto ícone de eternidade. Apenas o símbolo a alma humana, a borboleta no meio da testa da Imortalidade, permanecia intacto. A luta de Jac com a chave continuou. Começava quase a ficar desmoralizada, perante a ideia de que a entrada não lhe seria permitida, quando a tranqueta se soltou e a fechadura cedeu finalmente. Ao empurrar a porta, as dobradiças gemeram como um idoso. De imediato, o cheiro gredoso a pedra e ar bafiento, misturado com folhas decompostas e madeira seca, veio ao encontro dela. Jac chamava-lhe o cheiro dos esquecidos. Deteve-se na soleira e espreitou para o interior. A luz matutina que penetrava pelas duas janelas de vitral decoradas com lírios roxos saturava o espaço interior com uma espécie de melancólica cor de cobalto, aguada. Derramando-se também por sobre o anjo de pedra prostrado no altar. O seu rosto estava escondido, mas a dor era perceptível pela forma como os seus delicados dedos de mármore pendiam sobre o pedestal e pelo modo como as asas estavam penduradas, as pontas roçando pelo chão.
Sob cada uma das janelas, urnas de alabastro continham as oferendas que Jac trouxera no ano anterior: ramos de flores de macieira, entretanto secos e murchos. No centro do pequeno recinto, num banco de granito, estava sentada uma mulher, à espera, observando Jac, esboçando um sorriso familiar e triste. A luz azul atravessava a forma da mulher e espalhava-se pelas pernas de Jac. Receava que não viesses. A voz suave parecia advir do ar em redor do espectro translúcido, de dentro dele». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT