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O infante Fernando não quer ficar
«(…) Não obstante os
monólogos íntimos que o infante e o rei travavam, lampejos da mente sobre a
fala, eles traduziam-se acima de tudo na necessidade de evitar agredirem-se,
sempre à procura de uma mesura que pudesse suavizar o palavreado. Que dizeis,
Fernando?, insurgiu-se o rei. Que injustiça pretendeis acometer-me? Sabeis tão
bem como eu que depois de nosso pai morrer nunca deixei de vos agasalhar,
acrescentar e manter. Dignifiquei a vossa Casa, fiz crescer os vossos bens,
protegi-vos. Que tínheis vós antes de nosso pai falecer? Eu digo-vos. Tínheis
menos do que tens agora. Porque não lhe dissestes a ele o que me estais hoje a
dizer?
Sem se interrompe em
jeito de reprimenda, Duarte continuou: a vós dei-vos o Mestrado de Avis, que de
rendas é superior ao de Sant'Iago que nosso irmão João detém, e dessa
inferioridade ele se não queixou como agora vós fazeis. Contrariamente ao que
vindes defendendo, não quiseste aceitar o barrete cardinalício que vos oferecia
Gomes Ferreira por recomendação de Sua Eminência. Que maior dignidade podias
alcançar se aceitasses o cargo e que rendas não conseguirias? Não seria mais
apropriado para vós, um homem tão dedicado a Deus, serdes cardeal? No capítulo
dos casamentos, nunca vos vi interessado em folgar
com donzela, assim como também desconheço o vosso interesse pelo matrimónio.
Se é certo que convinha a Portugal o casamento de um dos seus mais ilustres
filhos, também é verdadeiro que mesmo sem estar de acordo tenho respeitado o
vosso voto de castidade. É só por isso que não tendes hoje dama da melhor
qualidade para vos aquecer a cama e gerar os filhos que gostarias de ter. Sendo
assim, proponho-vos o seguinte: prontificas-te a renegar o voto de castidade?
Responde, irmão, toma esse compromisso comigo, sela nem que seja com um abraço
a proposta que vos faço e hoje mesmo emissários percorrerão o mundo para vos
encontrar dama de virtude e realeza sem par. Fala, responde ao que te proponho!
O infante gaguejou,
entupido pela força que Duarte deu ao desafio. Queria dizer que sim, que não,
que ia pensar, mas ficou mudo, de cabeça baixa, sem responder ao repto que o
irmão lhe fez. Porque forçais a vossa ignorância?, prosseguiu Duarte. É só para
me reptardes? Olha, irmão, não estás casado, mas não estás atrasado. Isso vos
garanto. Tinha eu mais três anos do que agora vós tendes quando me casei com a
nossa amada rainha, os mesmos anos que Pedro havia quando se casou com a
senhora dona Isabel de Urgel. Não há por isso nenhum desacerto, não pode haver,
a não ser a manifesta vontade em manterdes o sacramento que juraste. Um reino
não se constrói num só dia. Por muito que nosso pai o tenha erguido, muito há
para fazer. Esperai algum tempo e vereis que aparecerão assuntos importantes para
um nobre da vossa estirpe se envolver e deles retirar o engrandecimento que
hoje reclamais. Ide, reconsiderai, esperai que vos proponha assunto vantajoso.
Até lá, aguardai por uma resposta que não deixarei de vos dar.
Aceitando o convite,
quase a vencer a ombreira da porta, Fernando, virando-se para trás, deixou mais
uma frase por decifrar: se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros,
reconsiderai também como me aconselhais. Ao retirar-se, o infante deixou na
sala um vazio difícil de preencher. Duarte trancou-se silencioso, olhos
fechados para melhor intuir o que acabara de suceder. Aos poucos, recuperando cada
momento da conversa ainda fresca, tentou estabelecer ligações entre os
argumentos do irmão e o persistente clima de conspiração que pressentia.
Duvidava. Duvidava mesmo que fossem realmente as razões expostas pelo irmão o
verdadeiro motivo da presença dele ali naquele dia. Todavia, ficava com que se
entreter. Levantou-se, atravessou a sala em passadas que retomavam a partida,
avançando para recuar demorando uma eternidade para chegar de uma parede a outra.
Rebuscava naquele incessante caminhar, antes de mais, um significado que o
levasse ao cerne da questão: tudo o que o irmão lhe disse correspondia a uma
iniciativa concertada? Assim sendo, quem eram os concertantes? Não lhe ocorria
nenhuma relação e por isso se martirizava.
Uma sombra, a opacidade
dos dias infelizes assestou sobre o rosto de Duarte. A angústia de estar perto
da verdade sem no entanto a alcançar devorava-lhe a mente. Para ele, o
palavreado do irmão tanto podia significar uma proposta, uma ameaça, ou mesmo,
quem sabe, uma traição. Mas se não fosse assim? Se o discurso de Fernando
significasse apenas um desabafo? Então só tinha de relegar tudo o que foi dito
para os assuntos sem importância. Se é a vós que sirvo, não deixeis que me
consagre a outros, reconsiderai por isso também como me aconselhais, repetia
Duarte para si, sem saber como interpretar a frase. Sentiu medo. Não por ele,
pensava na família, e só a simples ideia de a imaginar desunida o comovia. Ele,
o guardião irrepreensível da concórdia familiar, não podia deixar quebrarem-se os
laços fraternais por causa de interesses pessoais, lembrando-se recorrentemente
do juramento que fez à saudosa mãe e que naquela hora fazia mais sentido do que
nunca». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
Cortesia de Cdo
Autor/JDACT