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Eram numerosos, todas as manhãs, os que percorriam o caminho do castelo para
aguardar o seu despertar, acotovelando-se no corredor que conduzia ao seu
quarto. E quando ele aparecia, acolhiam-no com centenas de fórmulas votivas, em
voz alta e em voz baixa, cacofonia que acompanhava cada um dos seus passos. A
maior parte deles estava vestido como ele, largo serual preto, camisa branca de
riscas, boné cor de terra, e quase toda a gente arvorava os mesmos bigodes
espessos e orgulhosamente enrolados para cima, num rosto glabro. O que é que
distinguia o xeque? Apenas esse colete verde-maçã, enfeitado a fio de ouro, que
ele usava em todas as estações, como outros usam uma capa de zibelina ou um
ceptro. Dito isto, mesmo sem esse ornamento, nenhum visitante teria tido
dificuldade em distinguir o senhor no meio da multidão, por causa dessas
inclinações que todas as cabeças faziam umas após outras, para lhe beijar a
mão, cerimonial que se prolongava até à sala dos Pilares, até ele ter tomado o
lugar habitual sobre o sofá e ter levado aos lábios a ponta dourada do seu
cachimbo de água.
Ao
regressarem a casa, mais tarde, durante o dia, esses homens diriam às suas
esposas: esta manhã, vi a mão do xeque. Não era beijei a mão...
Faziam isso, é certo, e faziam-no em público, mas tinham pudor de o dizer.
Também não era: vi o xeque, palavras pretensiosas, como se se tratasse
de um encontro entre duas personagens de igual categoria! Não, vi a mão do
xeque, era essa a expressão consagrada. Nenhuma outra mão tinha tanta
importância. A mão de Deus e a do sultão não prodigalizavam senão calamidades
globais; é a mão do xeque que espalha as desgraças quotidianas. E por vezes
também migalhas de felicidade.
Na
língua das gentes da região, a mesma palavra, kaff, designava por vezes
a mão e a bofetada. Quantos senhores dela tinham feito símbolo de poder e
instrumento de governo. Quando se encontravam entre eles, longe dos ouvidos dos
seus sujeitos, havia sempre um adágio que lhes vinha à boca: é preciso que
um camponês tenha sempre uma bofetada junto da nuca; tendo isso como
significado que é necessário fazê-lo viver constantemente no temor, de ombros
baixos. De resto, muitas vezes, bofetada não era mais do que um
diminutivo de ferros, chicote, trabalhos forçados... Nenhum
senhor era sancionado por maltratar os seus súbditos; se, algumas vezes, muito
raramente, as autoridades superiores lhe chamavam a atenção, é porque estavam
decididas a perdê-lo por razões totalmente diferentes, e procuravam o mínimo
pretexto para dar cabo dele. Há séculos que se vivia no reino do arbitrário, e
se outrora tinha havido uma época de equidade, já ninguém se lembrava dela.
Quando
se tinha a sorte de ter um senhor menos ávido, menos cruel do que os outros,
considerávamo-nos privilegiados, e agradecia-se a Deus ter demonstrado tanta
solicitude, como se o considerássemos incapaz de fazer mais. Era o caso em
Kfaryabda; lembro-me de ter ficado surpreendido, e mais do que uma vez
indignado, com a maneira afectuosa pela qual os aldeões evocavam esse xeque e o
seu reino. É verdade, diziam eles, que ele deixava que lhe beijassem a mão de
boa vontade e, de vez em quando, aplicava a um dos seus sujeitos uma bofetada
vigorosa, mas nunca se tratava de um vexame gratuito; como era ele que exercia
a justiça no seu domínio, e que todos os diferendos, entre irmãos, entre
vizinhos, entre marido e mulher, eram resolvidos perante ele, o xeque tinha o
hábito de ouvir os queixosos, seguidamente algumas testemunhas, antes de propor
um acordo; as partes eram obrigadas a conformar-se com ele, e a reconciliar-se
imediatamente, através dos usuais beijos; se havia alguém mais teimoso, a
bofetada do senhor intervinha como último argumento. Tal sanção era
suficientemente rara para que os aldeões não pudessem falar de outra coisa
durante semanas, aperfeiçoando-se na descrição do assobio da bofetada,
inventando as marcas dos dedos que teriam ficado visíveis durante três dias, e
as pálpebras do infeliz que nunca mais deixariam de piscar. Os conhecidos do
homem esbofeteado vinham visitá-lo. Sentavam-se em círculo ao redor da sala,
silenciosos como num luto. Depois havia um que levantava a voz para dizer que
ele não se deveria sentir humilhado. Quem é que não tinha sido esbofeteado pelo
pai?» In Amin Maalouf, O Rochedo de Tanios, 1993, tradução de Maria Sarmento,
Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-885-6.
Cortesia
Difel/JDACT