quinta-feira, 21 de abril de 2016

O Rochedo de Tanios. Amin Maalouf. «De resto, muitas vezes, bofetada não era mais do que um diminutivo de ferros, chicote, trabalhos forçados... Nenhum senhor era sancionado por maltratar os seus súbditos…»

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«(…) Eram numerosos, todas as manhãs, os que percorriam o caminho do castelo para aguardar o seu despertar, acotovelando-se no corredor que conduzia ao seu quarto. E quando ele aparecia, acolhiam-no com centenas de fórmulas votivas, em voz alta e em voz baixa, cacofonia que acompanhava cada um dos seus passos. A maior parte deles estava vestido como ele, largo serual preto, camisa branca de riscas, boné cor de terra, e quase toda a gente arvorava os mesmos bigodes espessos e orgulhosamente enrolados para cima, num rosto glabro. O que é que distinguia o xeque? Apenas esse colete verde-maçã, enfeitado a fio de ouro, que ele usava em todas as estações, como outros usam uma capa de zibelina ou um ceptro. Dito isto, mesmo sem esse ornamento, nenhum visitante teria tido dificuldade em distinguir o senhor no meio da multidão, por causa dessas inclinações que todas as cabeças faziam umas após outras, para lhe beijar a mão, cerimonial que se prolongava até à sala dos Pilares, até ele ter tomado o lugar habitual sobre o sofá e ter levado aos lábios a ponta dourada do seu cachimbo de água.
Ao regressarem a casa, mais tarde, durante o dia, esses homens diriam às suas esposas: esta manhã, vi a mão do xeque. Não era beijei a mão... Faziam isso, é certo, e faziam-no em público, mas tinham pudor de o dizer. Também não era: vi o xeque, palavras pretensiosas, como se se tratasse de um encontro entre duas personagens de igual categoria! Não, vi a mão do xeque, era essa a expressão consagrada. Nenhuma outra mão tinha tanta importância. A mão de Deus e a do sultão não prodigalizavam senão calamidades globais; é a mão do xeque que espalha as desgraças quotidianas. E por vezes também migalhas de felicidade.
Na língua das gentes da região, a mesma palavra, kaff, designava por vezes a mão e a bofetada. Quantos senhores dela tinham feito símbolo de poder e instrumento de governo. Quando se encontravam entre eles, longe dos ouvidos dos seus sujeitos, havia sempre um adágio que lhes vinha à boca: é preciso que um camponês tenha sempre uma bofetada junto da nuca; tendo isso como significado que é necessário fazê-lo viver constantemente no temor, de ombros baixos. De resto, muitas vezes, bofetada não era mais do que um diminutivo de ferros, chicote, trabalhos forçados... Nenhum senhor era sancionado por maltratar os seus súbditos; se, algumas vezes, muito raramente, as autoridades superiores lhe chamavam a atenção, é porque estavam decididas a perdê-lo por razões totalmente diferentes, e procuravam o mínimo pretexto para dar cabo dele. Há séculos que se vivia no reino do arbitrário, e se outrora tinha havido uma época de equidade, já ninguém se lembrava dela.
Quando se tinha a sorte de ter um senhor menos ávido, menos cruel do que os outros, considerávamo-nos privilegiados, e agradecia-se a Deus ter demonstrado tanta solicitude, como se o considerássemos incapaz de fazer mais. Era o caso em Kfaryabda; lembro-me de ter ficado surpreendido, e mais do que uma vez indignado, com a maneira afectuosa pela qual os aldeões evocavam esse xeque e o seu reino. É verdade, diziam eles, que ele deixava que lhe beijassem a mão de boa vontade e, de vez em quando, aplicava a um dos seus sujeitos uma bofetada vigorosa, mas nunca se tratava de um vexame gratuito; como era ele que exercia a justiça no seu domínio, e que todos os diferendos, entre irmãos, entre vizinhos, entre marido e mulher, eram resolvidos perante ele, o xeque tinha o hábito de ouvir os queixosos, seguidamente algumas testemunhas, antes de propor um acordo; as partes eram obrigadas a conformar-se com ele, e a reconciliar-se imediatamente, através dos usuais beijos; se havia alguém mais teimoso, a bofetada do senhor intervinha como último argumento. Tal sanção era suficientemente rara para que os aldeões não pudessem falar de outra coisa durante semanas, aperfeiçoando-se na descrição do assobio da bofetada, inventando as marcas dos dedos que teriam ficado visíveis durante três dias, e as pálpebras do infeliz que nunca mais deixariam de piscar. Os conhecidos do homem esbofeteado vinham visitá-lo. Sentavam-se em círculo ao redor da sala, silenciosos como num luto. Depois havia um que levantava a voz para dizer que ele não se deveria sentir humilhado. Quem é que não tinha sido esbofeteado pelo pai?» In Amin Maalouf, O Rochedo de Tanios, 1993, tradução de Maria Sarmento, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-885-6.

Cortesia Difel/JDACT