A
Bula. Grandi non immerito (fr. António Brandão)
«Uma
semana após o encerramento do décimo terceiro Concílio Ecuménico, célebre por
nele se ter pronunciado a deposição do imperador Frederico II da Alemanha e
desobrigado seus vassalos ao juramento de fidelidade, Inocêncio IV expedia, a
24 de Julho de 1245, a bula Grandi non immerito, determinando a entrega
da administração do reino português ao irmão de Sancho II, o conde de Bolonha.
Da matéria do texto inferimos, em linhas gerais, que esta bula procurou
justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado em que caíra o reino, circunstanciando-se
agravos a igrejas, mosteiros e clérigos, denunciando-se desleixo governativo e
enfatizando-se resistências de el-rei Sancho II em acolher as recomendações que
a Cúria Romana lhe fizera até então. Deste modo, perante as infrutíferas
tentativas de chamar o rei à razão no sentido de se manter a ordem e a justiça,
e perante a sua reiterada negligência, o Sumo Pontífice ordena que se receba e
acolha Afonso, conde de Bolonha, como governador e curador a fim de se
organizar o reino e velar pelo bem do rei. Pela importância que veio assumir
este documento no devir dos tempos na historiografia e literatura portuguesas,
afigura-se-nos pertinente a sua leitura analítica no sentido de contribuir para
o entendimento de alguns pressupostos retóricos e conceptuais, subjacentes à
elaboração do seu discurso, que parece ter vindo arrebatar, a Sancho II, a
legitimação governativa que outrora a bula Manifestis Probatum dera a
Afonso Henriques. A peça retórica começa por dirigir-se nos preceitos habituais
aos seus destinatários, neste caso, aos barões e comunidades, concelhos de cidades
e castelos, cavaleiros e povo do reino de Portugal, exultando todos os reinos
da fé cristã onde, para além do culto e o serviço de Deus, reina a paz, a
prosperidade e a tranquilidade por aí se observar a ordem e a justiça: com
razão exultamos no Senhor com grande alegria, visto que os reinos da fé cristã
estão em situação vantajosa, e a Igreja e outras coisas destinadas ao culto e
serviço de Deus, as pessoas eclesiásticas e os outros fiéis, que nesses reinos habitam,
se alegram com a tranquilidade da paz; nesses reinos a fé católica de cada vez
toma maior vigor, observa-se aí a justiça e a todos se impele ali a audácia de
se tornarem culpados.
Em
contrapartida, revela ser a mágoa grande quando esses reinos se dividem em
discórdias, permitindo-se, pelo afrouxamento da devoção e desprezo da justiça,
actos ilícitos e reprováveis aos seus concidadãos: não obstante sentimo-nos
imensamente magoados quando esses reinos (...) se dividam em discórdias e,
afrouxando o ardor da devoção, esfriam no culto da fé, desprezam a justiça e
permitem aos seus habitantes praticar coisas ilícitas. Dos segmentos
textuais retirados ao preâmbulo, sobressai a importância da justiça e a relação
de causa e efeito entre esta e a ordem. Na sequência desse pressuposto, o nexo
inverso é naturalmente apresentado como válido, ou seja, o desprezo de justiça,
ou a falta dela, tem como efeito a desordem. É neste enfoque de sentidos de
causalidade que se prepara e justifica a sentença seguinte: os reinos em
situação próspera devem continuar os modos da sua governação; os que se afundam
na desordem devem ser corrigidos. Por isso com grande cuidado e maior
empenho achamos dever desejar que os reinos cristãos, que estão em situação próspera,
continuem a ser nesse estado governados e aqueles que se vêem a afundar-se
perigosamente sejam reformados com louvável renovação. Estava lançada a
estratégia retórica em torno do primeiro silogismo argumentativo: os reinos com
justiça prosperam e vivem em paz; os que a desprezam, vivem em desordem; os que
prosperam, devem continuar; logo, os que vivem em desordem, devem ser
reformados. Percebe-se para onde o discurso nos quer direccionar.
Nesse
sentido, o texto desenvolve-se focalizando agora o caso particular de Sancho II
e o seu reino. Enumeram-se queixas, ultrajes, deliberações régias tidas como
ofensivas e vexatórias a igrejas e mosteiros, assim como o rol de advertências,
excomunhões e sentenças de interdito, epístolas e provisões eclesiásticas que
embora pontualmente cumpridas não repararam as ofensas de acordo com as
pretensões da Igreja, por ser teimoso o rei e tardo em fazer justiça: na verdade tendo o nosso caríssimo filho em
Cristo, ... tomado conta do governo ... oprimiu desmedidamente as igrejas e
mosteiros existentes no reino com variados impostos e vexames tanto por si
próprio como por intermédio da sua gente e permitiu de bom grado que por outros
fossem vexados conforme à vontade destes. (...) E quanto a
resgatar a insolvência dos seus crimes, este rei mostra-se tão indiferente que,
no seu reino, os bens, tanto eclesiásticos como de leigos, por fraqueza da
justiça popular, são roubados à vista de toda a gente por ladrões, espoliadores,
usurpadores, incendiários, profanadores públicos e abomináveis homicidas de
padres, como superiores de conventos e outros religiosos, clérigos e seculares
e até leigos». In Herlânder Gonçalves
Santos, D. Sanco II, Da Deposição à Composição das Fontes Literárias dos
séculos XIII e XIV, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dissertação
de mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientação de José
Carlos Miranda, Porto, 2009.
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