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«Nessa
manhã, Godofredo da Conceição Alves, encalmado, soprando de ter vindo do
Terreiro do Paço quase a correr, abria o batente de baetão verde, do seu
escritório num entressolo da rua dos Douradores, quando o relógio de parede pôr
cima da carteira do guarda-livros batia duas horas, naquele tom, cavo, a que os
tectos baixos do entressolo davam uma sonoridade dolente, e cava. Godofredo
parou, verificou o seu próprio relógio preso pôr uma corrente de cabelo sobre o
colete branco, e não conteve um gesto de irritação vendo a sua manhã assim
perdida, pelas repartições do Ministério da Marinha: e era sempre assim quando
o seu negócio de comissões para o Ultramar o levava lá: apesar de ter um primo de
sua mulher, director-geral, de escorregar de vez em quando uma placa na mão dos
contínuos, de ter descontado a dois segundos oficiais letras de favor, eram
sempre as mesmas dormentes esperas pelo ministro, um folhear eterno de
papelada, hesitações, demoras, todo um trabalho irregular, rangente e
desconjuntado de velha máquina meio desparafusada. Sempre o mesmo
encaranguejamento, exclamou ele, pousando o chapéu sobre a carteira do
guarda-livros. Dá vontade de os espicaçar como aos bois: Eh Ruço para diante!
Eh Malhado! O guarda-livros, um moço de ar amarelado e doente, sorriu. Espalhou
areia sobre a larga folha que acabava de escrever, e disse, sacudindo-a: o sr.
Machado deixou um bilhete lá dentro..., diz que ia ao Lumiar. Então Godofredo,
que limpava a testa com o lenço de seda, sorriu também, de leve, passando logo
pelo bigode o lenço, escondendo o sorriso... Depois examinou a correspondência,
que o guarda-livros continuava a polvilhar de areia.
Um
momento uma carroça, fora, atroou a rua estreita, com um ruído de ferragens
sacudidas: depois tudo caiu num silêncio. Um caixeiro, agachado diante dum
caixote enorme, escrevia um nome sobre a tampa. A pena de pato rangia, por cima
o relógio batia um tic-tac forte. E naquele grande calor do dia, no abafamento
dos tectos baixos, subia dos caixotes, de dois fardos, do pó da papelada, um
cheiro vago de ranço, e de mercearia. O sr. Machado estava ontem em D. Maria, disse
então o guarda-livros, sem cessar de escrever. Alves largou logo a carta que
lia, interessado, com o olhar mais vivo: que ia ontem? O Trapeiro de Paris... Que
tal? O guarda-livros ergueu os olhos da carta para responder: eu gostei muito
do Teodorico... Alves ainda ficou esperando algum outro detalhe, uma
apreciação. Mas o guarda-livros retomara a pena, e ele recontinuou a sua leitura.
Depois o trabalho do caixeiro agachado interessou-o um instante. Seguia o pincel,
gozava as curvas das letras. Ponha-lhe um til. Fabião tem um til... E, como o
caixeiro se embaraçou um momento, ele próprio se abaixou, tomou o pincel, deu o
seu til a Fabião. Fez ainda uma recomendação ao guarda-livros sobre uma remessa
de baetão vermelho para Luanda e, empurrando outro batente verde, descendo dois
degraus, porque naquele entressolo os pavimentos eram de níveis diferentes,
penetrou enfim no seu gabinete, pôde desabotoar o colete, estender-se enfim
numa poltrona de reps verde.
Fora,
um dia de julho abrasava, faiscava na pedra dos passeios: mas ali, naquele
gabinete, onde nunca dava o sol, assombreado pelos altos prédios fronteiros,
havia uma frescura; as persianas verdes estavam corridas fazendo uma penumbra;
e o verniz das duas carteiras, a dele e a do seu sócio, a esteira que cobria o
chão, o reps verde da cadeira bem escovado, uma moldura de ouro encaixilhando
uma vista de Luanda, a alvura dum grande mapa, tinham um ar de arranjo, de
ordem, que punha como um repouso, uma frescura maior. Havia, mesmo, um ramo de
flores, que sua mulher, a boa Lulu, lhe tinha mandado havia dias, compadecida
de o saber toda uma daquelas manhãs de calma, no abafamento dum escritório, sem
uma cor de flor para alegrar os olhos. Ele tinha posto o ramo sobre a carteira
do Machado. Mas, sem água, as flores murchavam. O batente verde abriu-se, o
guarda-livros mostrou a face amarelada e doente: o sr. Machado deixou alguma
recomendação a respeito do vinho de Colares para o Cabo Verde?
Então
Alves lembrou-se da carta do sócio, que estava sobre a sua escrivaninha.
Abriu-a; as duas primeiras linhas explicavam a ida ao Lumiar; depois, com
efeito, começava, a respeito do Colares... Alves deu a carta ao guarda-livros. O
batente fechou-se de novo, e Alves agora tinha outra vez o sorriso de há pouco,
mas que não disfarçava. Desde o começo do mês, era a Quarta ou Quinta vez que o
Machado desaparecia assim do escritório, ora para ir ao Lumiar ver a mãe, ora
mesmo, sem razões, ou com esta palavra vaga: um negociozito. E Alves
sorria ainda, percebia bem o negociozito. Machado tinha vinte e seis
anos; e era bonito moço, com o seu bigodito louro, o cabelo anelado, e o ar
elegante. As mulheres gostavam dele. Desde que eram sócios, Alves conhecera-lhe
três ligações: uma linda espanhola, que, apaixonada pôr ele, deixara um
brasileiro rico, um antigo presidente de província, que lhe pusera casa; depois
uma atriz de D. Maria, que não tinha nada senão uns bonitos olhos; e agora
aquele negociozito. Mas estes amores decerto eram mais delicados,
tomando um lugar maior no coração, na vida de Machado… Alves sentia-o bem, pôr certo
ar inquieto e preocupado do sócio, o quer que fosse de contrafeito, de triste
pôr vezes... Também o Machado nunca lhe dissera nada, não mostrara jamais a
mais leve tendência para uma efusão, uma confidência. Eram íntimos, Machado ia
passar muitas noites à casa dele, tratava a Lulu quase como uma irmã, jantava
lá todos os domingos mas, ou porque tivesse entrado na firma comercial havia
apenas três anos, ou porque era dez anos mais novo, ou porque Alves fora amigo
de seu pai e um dos testamenteiros, ou porque era casado, Machado conservava
para com ele uma certa reserva, um vago respeito, nunca entre eles se
estabelecera uma verdadeira camaradagem de homens. Também Alves não lhe dizia
nada. O negociozito não pertencia aos interesses da firma. Ele não tinha
nada com isso. Apesar daquelas ausências repetidas, Machado continuava a ser muito
trabalhador, amarrado à carteira dez e doze horas em dias de paquete, activo,
fino, vivendo todo para a prosperidade da firma: e Alves não podia deixar de
confessar que se na firma ele representava a boa conduta, a honestidade
doméstica, a vida regular, a seriedade de costumes, Machado representava a
finura comercial, a energia, a decisão, as largas idéias, o faro do negócio...
Ele, Godofredo, fora sempre de natureza indolente, como seu pai, que, pôr
gosto, se movia duma sala para outra, numa cadeira de rodas...» In
Eça de Queirós, Alves e Companhia, 1925, Livraria Chardron, Editores, Lello e
Irmão, Porto, Editorial Presença, 2003, Obras de Eça de Queirós, ISBN
978-972-233-101-2.
Cortesia
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