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«(…)
Tenho porta-chaves, postais ilustrados e petit torres Eiffel. É para a Christine.
Ah! Max arqueou uma sobrancelha e acenou com a mão para a banca. Então nada que
eu tenha aqui. Tem as coisas boas escondidas, é? Hugo olhou por cima do ombro
do amigo e viu o homem corpulento a descer o cais, de mãos nos bolsos. A sua vítima,
a bouquiniste, parecia pouco firme nas pernas e Hugo viu-a desabar numa cadeira
de lona ao lado da banca, o rosto afundado nas mãos. Enquanto Hugo reparava, ela
levou a mão a um saco de plástico e retirou uma garrafa pequena. Quando olhou de
volta, Max observava-o. Aquilo, na mão dela, é o seu maior problema, afirmou o velho
homem. Mas por aqui é melhor cada um meter-se na sua vida. Apontou para os seus
livros. Então, vai comprar ou está só a perder tempo? E com isso, quero dizer o
meu. Hugo centrou a sua atenção de novo em Max. Uma prenda, lembra-se?
Bien,
deixe-me ver. Max pegou num livro de capa dura, uma edição com fotografias a preto
e branco de estrelas de Hollywood dos anos 20 aos 70. Mostrou a capa a Hugo, a fotografia
de um Cary Grant sorridente, todo ele dentes e cabelo liso. É parecido consigo,
mon ami. Hugo já escutara aquele comentário da sua esposa, embora tivesse presumido
que ela estava a gozá-lo. A legenda explicava que Grant tinha quarenta e um anos
na altura em que a fotografia fora tirada, um ano mais jovem do que Hugo. Com
um metro e oitenta e cinco, Grant era também dois centímetros mais baixo do que
ele. Todavia, os dois exibiam o mesmo cabelo farto, se bem que o de Hugo fosse de
um castanho-claro, claro o suficiente para camuflar alguns recentes fios de
cabelo grisalho. O seu cabelo denso nunca vira gel, ou o que quer que aqueles tipos
usavam naquela altura. Na fotografia, os olhos de Cary Grant tremeluziam como
jóias, um olhar duro que Hugo conseguia imitar quando era necessário; porém,
habitualmente, os seus olhos eram de um castanho mais escuro e caloroso, mais pensativo
do que magnético. Os olhos de um observador, não de um executante.
Dê cá.
Max pegou no livro, dobrou-se e levantou uma pilha de jornais que repousavam em
cima de uma pasta de cabedal gasto. Tenho alguns livros ali. Veja à vontade. Hugo
ajoelhou-se, abriu o fecho da pasta e espreitou para o seu interior. Um Agatha
Christie? Oui, anuiu Max. Uma primeira edição, por isso tràs cher. Creio que um
humilde diplomata como o senhor não terá dinheiro para tal. Deve ter razão, mas
conheço alguém que iria adorar. Max desenhou um sorriso rasgado. Alguém que
pode adorá-lo por lho dar, quer dizer. Talvez. Hugo virou o livro. Não era grande
especialista em livros raros, porém, sabia tanto quanto muitos dos bouquinistes
que vendiam os seus artigos ao longo do rio. Aquele era uma beleza, uma primeira
edição de 1935 de Morte nas Nuvens, um dos mistérios de Hercule Poirot. Encadernado
em marroquim castanho-avermelhado, saliência na lombada, impresso com letras douradas
e guardas jaspeadas, e parecia que ainda possuía o tecido original na espinha.
Reparou num pequeno rasgão na goteira da última página, mas no geral ficou bastante
impressionado. Era sem dúvida um excelente exemplar. Hugo estendeu o livro. Quanto?
Para si, quatrocentos euros. E para os outros? Trezentos, claro. Na América vigarizamos
os estranhos, comentou Hugo, não os amigos. Não está na América. Os olhos de Max
cintilaram. É um homem forte, Hugo, forte o suficiente para me atirar ao rio. Não
me atreveria a enganá-lo. O americano resmoneou e tirou outro livro da pasta.
Encadernado a tecido azul-escuro, exsudava antiguidade, e uma vista de olhos rápida
no interior confirmou-o: 1873. As letras douradas na lombada diziam Da Guerra,
e depois via-se a palavra Clausewitz. A primeira tradução inglesa?
Merde!. Max apressou-se a tirar o livro das mãos de Hugo. Este não está à venda».
In
Mark Pryor, O Livreiro, 2012, tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa,
2015, ISBN 978-989-724-062-1.
Cortesia
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