segunda-feira, 16 de maio de 2016

O Rapto de Dona Mécia. Alexandre Borges. «No Verão de 1246, vencido pelas armas, Afonso congeminou um plano que derrotasse o irmão onde mais dói: ‘no coração’. Um grupo de homens, liderados por Raimundo Viegas Portocarreiro, irmão do arcebispo de Braga, e Gomes Anes»

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Sancho II e dona Mécia
«(…) E, como tal, ordenou que, a partir daquele momento, rei e rainha se separassem e não mais se voltassem a ver. Uma vez mais, Sancho II recusou vergar-se ou fez-se esquecido. A paciência de todas as partes tinha chegado ao limite. O resultado seria mais ou menos óbvio: a guerra. Em finais de 1245, Afonso desembarca em Lisboa, ia começar um ano de conflito constante. Em Gaia, tropas partidárias do rei defrontam a oposição. Da violenta batalha resulta uma dupla vitória para Sancho: uma directa, alcançada em campo pelas forças lideradas por Martim Gil Soverosa, e uma indirecta: a salvação do seu casamento. Mas a tentativa de golpe de Estado continuaria. De Coimbra, contemplando o Mondego e as margens, Sancho e Mécia compreendem que não resistirão sozinhos à conspiração. Pedem ajuda a Castela e, assim, do lado de lá da fronteira chegam a Portugal forças para apoiar o rei, e a Roma pressões para que o papa fizesse Afonso rever o seu comportamento diante do irmão. Os combates prosseguiam em diversos pontos do mapa, mas Sancho II continuava a sair vencedor de todos eles. Afonso percebia que era necessário encontrar uma solução drástica. Afinal, no amor e na guerra, vale tudo... No Verão de 1246, vencido pelas armas, Afonso congeminou um plano que derrotasse o irmão onde mais dói: no coração. Um grupo de homens, liderados por Raimundo Viegas Portocarreiro, irmão do arcebispo de Braga, e Gomes Anes, iria dirigir-se a Coimbra, infiltrar-se na corte e raptar dona Mécia. Pôr-se-ia assim termo àquele casamento maldito, fazendo cumprir a ordem do papa, e desacreditar e humilhar Sancho aos olhos do povo: um rei que nem soubesse tomar conta da mulher, como saberia tomar conta de Portugal? Os raptores chegaram numa plácida madrugada de Julho, já o calor cobria as noites do reino. Vestiam hábitos de monge, fazendo-se passar por inofensivos religiosos a caminho do Norte. Sem dificuldade, conseguiram que lhes abrissem a porta do paço, pedindo guarida naquela noite, um pouco de descanso na sua longa caminhada, acaso lhes fosse concedida a honra de algumas horas de paz perto do senhor Sancho. Por certo Nosso Senhor Jesus Cristo, explicaram, ficaria feliz. Por certo, até serenaria os ânimos celestiais tão simples gesto de generosidade do senhor de Portugal para com alguns humildes servidores de Cristo. Mais fariam: passariam a noite em claro, rezando pelo rei, pela sua saúde, pelo seu sucesso, pela paz, pela compreensão. E por dona Mécia, porque não?, por aquele casamento injustiçado, por aquelas duas nobres almas que não tinham culpa de se haver enamorado. E rezariam até, sim, apesar dos seus afazeres celestiais, não podiam ignorar o que nesta terra se passava, pelo fim da guerra, pelo entendimento de Afonso, por que esse irmão desavindo se arrependesse de suas atitudes e deixasse aquelas ínvias pretensões de retirar o trono a Sancho. Talvez dona Mécia e Sancho dormissem profundamente, talvez despidos, depois de terem entregue os corpos um ao outro, ou talvez dormissem sim, mas afastados, cobertos de tecidos leves, esgotados pelo calor. A passagem estava livre. Talvez os monges tivessem aliciado o guarda com uns morabitinos e uma espécie de bênção: vai, meu filho. Que os prazeres da carne não os terás no céu, e o homem não tivesse hesitado, deixando rei e rainha guardados por aquelas boas almas cristãs e rumando ao bordel mais próximo. Raimundo Portocarreiro e Gomes Anes introduziram-se no quarto e aproximaram-se de dona Mécia. Naquele instante, seria tão fácil acabar com tudo, tirar a vida ao rei, mas a vergonha era tão mais dolorosa do que a morte... De súbito, um tapou a boca da rainha enquanto o outro lhe prendeu os braços. Dona Mécia abriu os olhos, em sobressalto, tentando ver o contorno das figuras entre o breu da noite. Em poucos segundos, tinha as mãos e os pés atados e a boca amordaçada com um lenço. Sancho dormia. A mulher e os raptores lançaram-lhe um último olhar e desapareceram para lá da porta. O rei só acordaria alguns minutos depois, desassossegado pelo desatino dos mastins, já os falsos monges descobriam as cabeças e galopavam pela noite, levando a rainha. Sancho pegou numa espada e desceu. Pouco depois, já seguia no encalço dos raptores, acompanhado de alguns homens. Percebia que tomavam a direcção de Ourém, mas o atraso que trazia era suficiente para o impedir de os travar antes que alcançassem o castelo. Uma vez lá chegados, Sancho desceu do cavalo, exibiu as insígnias reais e bradou: eu, Sancho, rei de Portugal pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, neto do mui nobre e digno Afonso Henriques, ordeno que me seja devolvida a minha legítima esposa, Mécia Lopes Haro, filha de Lopo Dias Haro, senhor de Biscaia; mais ordeno que os raptores sejam trazidos perante a minha pessoa e pela minha espada confessem quem ordenou semelhante aleivosia para com o rei de Portugal». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9. 
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