sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Os manuscritos estavam escritos na escrita hebraica angular típica da Ibéria, a linguagem fundamentalmente judaico-portuguesa, um português antigo escrito em caracteres hebraicos»


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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«Abraham Vital, advogado particular em Istambul, ganha a sua vida apresentando petições ao Governo turco para conseguir subsídios para as pessoas que, devido a acidente ou doença, deixaram de poder trabalhar. Em 1981, travou com sucesso uma batalha legal em nome de um velho carpinteiro de cinquenta e nove anos chamado Ayaz Lugo, que tinha ficado com o braço e a mão direita paralisados num acidente de carro. Lugo morreu em Junho de 1988. A mulher falecera seis anos antes e não tinham filhos. No seu testamento, Lugo, agradecido, deixara a sua casa a Abraham Vital. Vim a ficar na casa de Lugo durante a minha estada de sete meses em Istambul, quando aí estive em 1990 a estudar a poesia sefardita, especialmente as baladas. Foi-me gentilmente cedida por Abraham Vital sem aceitar qualquer paga. Tínhamo-nos conhecido através de um amigo comum, o meu orientador de tese, Doutor Isaac Silva Rosa, da Universidade de Berkeley, antes, e agora da Universidade do Porto, em Portugal. Tanto Vital como Lugo são sefarditas, descendentes da vaga de judeus fugidos às perseguições em Espanha e Portugal no correr dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Os seus antepassados tinham recebido refúgio em Istambul, então conhecida entre os judeus e os cristãos como Constantinopla, logo a partir de 1492. Nesse ano, o sultão turco Bejazet II acolhera no seu reino milhares de judeus sefarditas que cumpriam uma ordem de expulsão decretada pelo rei Fernando e pela rainha dona Isabel de Espanha. Num abafado dia dos princípios de Maio, Vital conduziu-me à antiga casa de Ayaz Lugo nos arredores de Balat, o bairro judeu medieval de Istambul. Dois andares de pedra e estuque lascado emergiam como uma torre de vigia abandonada entre uma padaria e uma loja de discos. Mudei-me para lá no dia 9 de Maio de 1990. No interior, tudo me parecia cinzento e castanho, como uma velha fotografia sépia, até ter começado a remover a poeira.
Era possível tocar no tecto dos dois andares da casa sem ter de me pôr em bicos de pés. Janelas ovais do tamanho de uma bandeja filtravam cones de luz para o interior do meu quarto. A mobília, de madeira pesada e gasta pelo tempo, agora uma antiguidade, tinha sido comprada manifestamente quando Lugo era ainda criança. No armário do quarto encontrei milhares de cubos de açúcar impecavelmente acamados em malas de couro. Ao que tudo indica era um bem escasso durante a II Guerra Mundial. Estaria o açúcar assim arrumado para o caso de Lugo ter de escapar à pressa? Talvez os judeus devam ter sempre preparada pelo menos uma mala, pensei. Num guarda-roupa carcomido pelo caruncho, encontrei, debaixo de roupa interior de algodão, algumas barras de chocolate turco rançoso, o que me deu alguma satisfação: Lugo e eu partilhávamos inegavelmente uma fraqueza pelos doces. A minha cama consistia numa armação de ferro com um colchão comprimido fabricado em Konya. A etiqueta estava escrita em árabe, o que revelava ter mais de setenta anos; nos anos vinte o alfabeto latino substituiu o árabe em toda a Turquia. Não havia duche, apenas uma tina e um fiozinho de água fria acastanhada que cheirava a cloro e ferrugem. Lugo e a mulher deviam frequentar os balneários públicos.
Tinha inúmeros ratos a fazer-me companhia. Mas, miraculosamente, não havia formigas nem percevejos. Nesse mês de Julho, Abraham Vital decidiu começar a pôr a casa de acordo com os padrões ocidentais do século XX. A remodelação começou pela cave, de modo que eu não fosse incomodado. A 18 de Julho, os operários deram com um esconderijo secreto, uma abertura quadrada com quatro pés e uma profundidade de dois, que tinha sido tapada com tábuas de madeira e uma cobertura de cimento. Dentro do esconderijo estava um tik, o pequeno cofre cilíndrico que os judeus sefarditas usavam para guardar a Tora, os primeiros cinco livros do Antigo Testamento. Decorada com uma elaborada filigrana de prata e pavões de esmalte, verificou-se conter não a Tora, mas vários manuscritos encadernados a couro, nove ao todo. Os manuscritos estavam escritos na escrita hebraica angular típica da Ibéria, a linguagem fundamentalmente judaico-portuguesa, um português antigo escrito em caracteres hebraicos. Parte dos primeiros escritos, porém, estavam em hebraico medieval. Tinham sido escritos com um cálamo, a pena de junco usada na Ibéria. O papel estava em excelentes condições.
A não ser três deles, todos os manuscritos exibiam capas de velino polido com o título desenhado com iluminuras de letras com cabeças de aves. Predominavam as poupas, as corujas, os tordos, os pintassilgos europeus e os pavões. Via-se também uma espécie de beija-flor, o que é notável, por se tratar de uma família de aves do Novo mundo. Um intrincado rendilhado de figuras geométricas e de arabescos serve de fundo aos títulos. A folha de ouro é usada com prodigalidade. As cores dominantes são o carmim brilhante e o azul do lápis-lazuli. Reparei que todos os manuscritos exibiam uma assinatura em forma de íbis egípcia de um homem de nome Berequias Zarco. Das datas inscritas junto da assinatura e das referências incluídas no texto, sabemos terem sido escritos no decurso de vinte e três anos, de 5267 a 5290 do calendário judeu, ou seja, de 1507 a 1530 da era cristã. Na noite de 18 de Julho de 1990 comecei a ler a sua obra. O que encontrei consistia em seis tratados sobre vários aspectos da Cabala, a filosofia mística que a partir da Provença se propagou pela diáspora judaica no início da Idade Média e que tinha sobrevivido ao longo dos séculos seguintes tanto oralmente como por escrito. Os textos cabalísticos mais conhecidos são o Bahir e o Zohar.
Três dos manuscritos de Berequias, os que não têm título, têm uma natureza mais secular, porém. Unidos por uma tira de couro, o primeiro, data de 1507 e os dois últimos de 1530. Logo à primeira vista, pareceu-me evidente que tratavam do massacre de Lisboa de Abril de 1506. Cerca de dois mil cristãos-novos, os judeus forçados à conversão ao cristianismo em 1497, perderam a vida nesses motins, muitos deles queimados no Rossio, a praça que ainda hoje é o centro da capital portuguesa». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT