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«Desde
pequeno que trago um mapa de Varsóvia nas solas dos pés, por isso consegui
fazer o caminho quase todo até minha casa sem qualquer engano ou esforço. Foi
então que vi o alto muro de tijolo à volta da nossa ilha. Meu coração deu um
salto no peito, e uma esperança impossível dispersou os meus pensamentos, embora
eu soubesse que Stefa e Adam não estariam em casa para me dar as boas-vindas. Um
guarda alemão gordo, de pé, mastigava uma batata fumegante junto ao portão da
rua swiętojerska. Assim que me esgueirei lá para dentro, vi um jovem com um
boné de tweed enterrado na testa passar por mim correndo. O saco de farinha que
levava ao ombro pingava pontos e traços de líquido sobre o seu casaco, código
Morse escrito com sangue de galinha, imaginei. Homens e mulheres vagueavam
pesadamente pelas ruas geladas, esmagando a camada de gelo que as cobria com os
sapatos gastos, as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos dos casacos e nuvens de
vapor a fugir-lhes da boca.
Na
minha inquietação, quase tropecei num velho que morrera de frio à porta de uma
pequena mercearia. Vestia apenas uma camisa toda suja e tinha os joelhos nus e
terrivelmente inchados encolhidos contra o peito, numa tentativa de se
proteger. Os lábios cobertos de crostas de sangue estavam de um cinzento
azulado, mas tinha os olhos avermelhados, o que me deu a impressão de que o
último dos seus sentidos a deixar este mundo fora a visão. No vestíbulo do
prédio de Stefa, o papel de parede verde-oliva descolava-se e tiras caíam,
revelando manchas aveludadas de bolor negro. O apartamento estava gelado; e não
havia uma migalha de comida à vista. Espalhadas pela sala, viam-se cuecas,
meias e camisas. De homem. Tive a sensação de que Bina e a mãe já não estavam
lá havia muito tempo.
O
sofá, a mesa de jantar e o piano de Stefa tinham desaparecido, talvez vendidos,
ou destruídos para queimar e fazer luz. Gravadas na porta do seu quarto estavam
as marcas que ela e eu tínhamos feito para marcar a altura de Adam todos os
meses. Aproximei devagarzinho a ponta dos dedos da marca mais alta, de 15 de Fevereiro
de 1941, mas perdi a coragem no último segundo; não quis me arriscar a tocar em
tudo o que podia ter sido. Quem quer que fosse que agora dormia no quarto de
minha sobrinha gostava de ler; a minha tradução para o polonês de A
Midsummer Night’s Dream estava aberta ao contrário no chão, junto à
cabeceira da cama. Ao lado do livro havia uma caneca de alumínio, agora vazia,
que fora enchida com água do gueto; ao evaporar-se, deixara o depósito
amarelado de que eu tão bem me lembrava. A busca pelo apartamento reavivou a
consciência do meu objectivo ali, e tive a esperança de que o mundo voltava a
me alcançar agora, mas quando tentei abrir a porta do guarda-roupa de Stefa, os
meus dedos penetraram na madeira escura como se se enterrassem num barro denso
e frio. Como seria ter 9 anos e estar encurralado na nossa ilha esquecida? Uma
pista: Adam costumava acordar sobressaltado durante as nossas primeiras semanas
juntos, catapultado dos seus terrores nocturnos, e inclinar-se por cima de mim
para pegar o copo d’água que eu sempre deixava sobre a mesa de cabeceira. Eu
acordava com os movimentos dele e levava-lhe o copo à boca, mas a princípio não
gostava que ele me perturbasse o sono. Só ao fim de quase um mês juntos é que
comecei a adorar senti-lo remexer-se e ouvi-lo dar vários goles seguidos sem
respirar, e depois, quando voltava a deitar-se, adorava a forma como puxava o meu
braço para enroscá-lo em volta de si. O suave sobe e desce do seu peito magro
recordava-me tudo aquilo que ainda tinha para agradecer à vida.
Deitado
na cama com meu sobrinho-neto, eu costumava obrigar-me a permanecer acordado,
porque não me parecia justo que um acto tão simples como inspirar pudesse
manter o garotinho no nosso mundo, e precisava observá-lo cuidadosamente, pôr a
mão em concha sobre aquela cabecinha loura e transmitir-lhe assim a minha protecção.
Queria que o acto de permanecer vivo dependesse de um processo muito mais
complexo. Para ele, e para mim também. Porque, então, morrer seria muito mais
difícil para nós dois. Quase todos os meus livros tinham desaparecido das
prateleiras que eu próprio fizer, queimados para aquecer a casa, sem dúvida.
Mas A Interpretação dos Sonhos, de Freud, e alguns dos meus outros
textos de psiquiatria ainda estavam lá. Quem quer que fosse que estivesse
vivendo lá agora, provavelmente descobrira que a maior parte deles era de primeiras
edições e que talvez valessem um bom preço fora do gueto.
O meu
olhar caiu sobre o tratado médico alemão no qual enfiara dois matzos de
emergência, mas não fiz qualquer tentativa para recuperá-los; embora a fome
ainda esfaqueasse minhas entranhas, já não precisava daquele tipo de sustento. Ávido
pelo consolo de um horizonte longínquo, subi pelas escadas do prédio até ao
telhado e passei cuidadosamente para a plataforma de madeira que os Tarnowski,
nossos vizinhos, tinham construído para observar as estrelas. À minha volta, a
cidade erguia-se em espirais, torreões e cúpulas de contos de fadas, uma
fantasia de criança transformada em realidade. Dei uma volta completa em meu
eixo, e senti a ternura invadir-me. Será possível acariciar uma cidade? Ser o rio
Vístula, e poder abraçar Varsóvia, deve ser por vezes uma recompensa que ele dá
a si próprio. E, contudo, o bairro de Stefa parecia mais tristonho do que nas
minhas recordações, os prédios ainda mais afundados num pântano de degradação,
ruína e sujeira, apesar de todos os nossos arames e colas. Um grito rouco
cortou o ar, espantando meus devaneios. Do outro lado da rua, debruçado em uma
janela do quarto andar, um homem de cara chupada e sobretudo esfarrapado
acenava-me freneticamente. Tinha as têmporas encovadas, e a barba por fazer
jogava uma sombra branca no seu rosto». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia,
2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015,
ISBN 978-972-004-728-1.
Cortesia
de ERecord/PortoEditora/JDACT