terça-feira, 31 de maio de 2016

Paixão no 31. Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «A vida, o sol ardente, as aguas frias, os ares grossos, férvidos e feios. Mas os meus pensamentos, que são meios para enganar a própria natureza…»

jdact

No Oriente
«(…) Em vez, porém, de voltar para o reino, o poeta, obrigado ao serviço militar, teve de ir para o aborrecido e perigoso cruzeiro do estreito de Meca (golpho de Aden), na armada do commando de Manuel Vasconcellos (Fevereiro de 1553). Eis como Diogo do Couto dá noticia desse cruzeiro: partido Manuel Vasconcellos de Gôa…, e em sua companhia Fernão Farto, que levava os padres para irem a Abassia, foram seguindo sua derrota até haverem vista da costa de Arábia, e Manuel Vasconcellos se foi lançar com toda a sua armada a Monte de Félix [é o Ras, cabo, ai Fil, ou Filuk, situado algumas dezenas de milhas, 38 em linha recta, para dentro do cabo de Guardafui, na costa setentrional da Somália; eis como elle vem descripto no roteiro inglês do Mar Vermelho e golpho de Aden, The Red Sea and Gulf of Aden Pilot, edição de 1900, Ras Filuk, ou mais propriamente Ras-al-Fil, o Mons Elephas dos romanos, assim chamado por causa da similhança que tem com um elephante, é uma elevada collina de 800 pés d'altitude acima do nivel do mar, a 8 milhas a oeste do Ras Alula. Tem a apparencia de uma ilha, quer se veja de leste, quer de oeste, pois são baixas as terras que lhe ficam ao pé. Os indigenas chamam-lhe geralmente Ras Belmúk; com tempo claro pôde ser visto á distancia de 40 milhas...; no valle que fica a leste ha uma laguna de agua salgada…; a oeste do Ras Filuk ha uma pequena, mas profunda baía, abrigada dos levantes e poentes, com um bom ancoradouro de 5 braças d'agua], como levava por regimento, pêra alli esperar as naos que haviam de vir do Achem e alli esteve até se lhe gastar a monção, sem lhe vir cahir alguma nas mãos. E sendo tempo de se recolher a invernar em Mascate, pêra recolher as nãos de Ormuz, por se recearem do cossario Cafár, se fez á vela e foi surgir naquelle porto, onde desapparelhou e esteve até Setembro e entrada de Uutubro, Década VII.
Ouçamos agora o poeta, edição de 1852:

Junto d'um sêcco, duro, estéril monte,
Inútil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido.
Onde nem ave voa ou fera dorme,

Nem corre claro rio ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido,
Cujo nome, do vulgo introduzido,
É Feliz, por antiphrasi infelice,
O qual a natureza

Situou junto á parte
Aonde um braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arábica aspereza,
Em que fundada já foi Berenice (ver nota),
Ficando á parte donde

Nota: Se a palavra relativa por que começa este verso se refere á Arábia, trata-se da Berenice que ficava na Arábia Pétrea, no extremo norte do Aelaniticus sinus. Neste caso, o Ficando do verso 14 refere-se a Berenice e este verso e o seguinte formam como que um parenthesis. Se, porém, o antecedente do Em que é a parte do verso 10, trata-se de uma das três ou quatro Berenices, que se achavam situadas na costa africana do Mar Vermelho. E se no verso 15 se deve ler nelle, como fez o primeiro editor das Rimas, não póde deixar de ser uma destas. Nelle seria então o braço d'alto mar do verso 11, isto é, o Mar Vermelho, a que, diga-se de passagem, os nossos antigos escriptores davam como limites extremos Suez e uma linha tirada do cabo de Guardafui ao de Fartaque.

O sol que nella ferve se lhe esconde;
O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado,
Arómata outro tempo, que volvendo

A roda (2), a ruda lingua mal composta
Dos próprios outro nome lhe tem dado.
Aqui, no mar que quer, apressurado,
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe um tempo e teve

Minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço,
Porque ficasse a vida

Por o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus e solitários,
De trabalho, de dôr e de ira cheios.
Não tendo tão somente por contrários

A vida, o sol ardente, as aguas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios.
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a própria natureza,
Também vi contra mi,

Trazendo-me á memoria
Alguma já passada e breve gloria,
Que eu já no mundo vi, quando vivi,
Por me dobrar dos males a aspereza,
Por mostrar-me que havia

No mundo muitas horas de alegria.
Aqui 'stive eu, com estes pensamentos,
Gastando tempo e vida, os quaes tão alto
Me subiam nas asas, que caía
(Oh vede se seria leve o salto!)

De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver um dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompiam os ares.

Aqui, a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pesares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna,

Soberba, inexorável e importuna!
Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse por descanso!
Tudo dôr lhe era e causa que padeça,

Mas que pereça não, porque passasse
O que quis o destino nunca manso.
Oh que este irado mar, gemendo, amanso!
Estes ventos, da voz .importunados,
Parece que se enfrêam;

Somente o ceu severo,
As estrellas e o fado, sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recrêam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,

Bicho da terra, vil e tão pequeno!
Se, de tantos trabalhos, só tirasse
Saber inda, por certo, que algum'hora
Lembrava a uns claros olhos, que já vi,
E se esta triste voz, rompendo fora,

As orelhas angélicas tocasse
Daquella, em cuja vista já vivi,
A qual, tornando um pouco sobre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados

De meus doces errores.
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E, posto que já tarde, piedosa.
Um pouco lhe pesasse,
[…]

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT