Cortesia de wikipedia
«(…) Perguntei-lhe então se era de
uma família que eu conhecera, que tinha o apelido de Macário. E como ele
me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu carácter uma ideia
simpática, porque os Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de
comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição
de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em I8z; ou g, na sua
mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um
dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e
do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário
tornou-se o seu guarda-livros. Disse-me ele que sendo naturalmente
linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentração.
Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro
saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A
existência, nesse tempo, era caseira e apertada. Uma grande simplicidade social
aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingénuos, os sentimentos menos complicados.
Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das
regas, chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre,
alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia cautelosa. Além
disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem
recolhido, conchegado à lareira, simples e facilmente feliz, como a guerra. E a
paz que, dando os vagares da imaginação, causa as impaciências do desejo.
Macário, aos vinte e dois anos,
ainda não tinha, como lhe dizia uma velha tia, que fora querida do
desembargador Curvo Semedo, da Arcádia, sentido Vénus. Mas por esse
tempo veio morar para defronte do armazém dos Macários, para um terceiro andar,
uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baça, o busto
bem feito e redondo e um aspecto desejável. Macário tinha a sua carteira no
primeiro andar por cima do armazém, ao pé de uma varanda, e dali viu uma manhã
aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre branco e braços
nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário
afirmou-se, e, sem mais intenção, dizia mentalmente aquela mulher, aos vinte
anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio: por que os seus
cabelos violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte, perfil aquilino
e firme, revelam um temperamento activo e imaginações apaixonadas. No entanto,
continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas à noite estava sentado
fumando à janela do seu quarto, que abria sobre o pátio: era em Julho e a
atmosfera estava eléctrica e amorosa: a rabeca de um vizinho gemia uma xácara
mourisca, que então sensibilizava, e era de um melodrama; o quarto estava numa
penumbra doce e cheia de mistério, Macário, que estava em chinelas, começou a
lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles braços que tinham a cor
dos mármores pálidos: espreguiçou-se, rolou morbidamente a cabeça pelas costas
da cadeira de vime, como os gatos sensíveis que se esfregam, e decidiu
bocejando que a sua vida era monótona. E ao outro dia, ainda impressionado,
sentou-se à sua carteira com a janela toda aberta, e olhando o prédio fronteiro,
onde viviam aqueles cabelos grandes, começou a aparar vagarosamente a sua pena
de rama. Mas ninguém se chegou à janela do peitoril, com caixilhos verdes.
Macário estava enfastiado, pesado,
e o trabalho foi lento. Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos
campos as sombras deviam ser mimosas e que se estaria bem vendo o palpitar das
borboletas brancas nas madressilvas! E quando fechou a carteira sentiu defronte
correr-se a vidraça; eram de certo os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos
louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis.
Era uma rapariga de vinte anos, talvez, fina, fresca, loura como uma vinheta
inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa de transparência das velhas
porcelanas, e havia no seu perfil uma linha pura, como de uma medalha antiga e
os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado, pomba, arminho, neve e ouro. Macário
disse consigo: é filha. A outra vestia de luto, mas esta, a loura tinha um
vestido de cassa com pintas azuis, um lenço de cambraia trespassado sobre o
peito, as mangas pendidas com rendas, e tudo aquilo era asseado, moço, fresco, flexível
e tenro. Macário, nesse tempo, era louro, com barba curta. O cabelo era anelado
e a sua figura devia ter aquele ar seco e nervoso que depois do século XVIII e
da revolução foi tão vulgar nas raças plebeias. A rapariga loura reparou
naturalmente em Macário, mas naturalmente desceu a vidraça correndo por trás
uma cortina de cassa bordada. Estas pequenas cortinas datam de Goethe e elas têm
na vida amorosa um interessante destino: revelam. Levantar-lhe uma ponta e
espreitar, franzi-la suavemente, revela um fim; corrê-la, pregar nela uma flor,
agitá-la fazendo sentir que por trás um rosto atento se move e espera, são
velhas maneiras com que na realidade e na arte começa o romance. A cortina
ergueu-se devagarinho e o rosto louro espreitou. Macário não me contou por
pulsações, a história minuciosa do seu coração. Disse singelamente que daí a
cinco dias, estava louco por ela. O seu trabalho tornou-se logo vagaroso
e infiel e o seu belo cursivo inglês, firme e largo, ganhou curvas, ganchos,
rabiscos, onde estava todo o romance impaciente dos seus nervos. Não a podia
ver pela manhã: o sol mordente de Julho batia e escaldava a pequena janela de peitoril.
Só pela tarde, a cortina se franzia, se corria a vidraça, e ela, estendendo uma
almofadinha no rebordo do peitoril, vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu
leque. Leque que preocupou Macário: era uma ventarola chinesa, redonda, de seda
branca com dragões escarlates bordados à pena, uma cercadura de plumagem azul,
fina e trémula como uma penugem, e o seu cabo de marfim, donde pendiam duas
borlas de fio de ouro, tinha incrustações de nácar à linda maneira persa». In
Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura, 1873-1874, Contos (1902,
Póstumo), Projecto Vercial, Wikipedia.
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