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«Quando
os três filhos se foram embora, ao fim de quinze dias a viverem com ele, João
Pedro fechou a porta e foi sentar-se no sofá da sala a olhar para a parede e a fumar.
Estava esgotado. Em redor, no chão, havia roupa de criança, peças de jogos e
brinquedos largados ao acaso. Havia um copo de leite com chocolate derramado
sobre a alcatifa e muitas, muitas bolachas que tinham sido usadas como munições
numa guerra fratricida. Algumas dessas bolachas haviam sido esmagadas pelos
pezinhos dos gémeos e pelas mãozinhas papudas do bebé. Tinham passado a manhã naquilo,
os dois mais velhos, de seis anos, a guerrearem-se, o bebé a gatinhar de uma
bolacha para a outra, a sentar-se, a agarrá-la, a esmagá-la com a mão, apanhando
depois as migalhas do chão para as enfiar na boca. João Pedro não os repreendeu
porque já lhe faltava o alento para os contrariar. Adorava os filhos, mas nessa
manhã sentia-se demasiado cansado e profundamente aliviado por saber que Clara os
viria buscar às onze.
Ela foi
pontual. Bateu à porta, recusou o convite para entrar, como de costume, a cerimónia
fria de Clara afigurava-se-lhe sempre estranha, tendo em conta que tinham uma história
de dez anos de intimidade. Mas, enfim, supunha que era o seu modo de dizer és uma
besta quadrada, sem o verbalizar. O ressentimento ainda persistia e João
Pedro desconfiava que não desapareceria tão cedo, se é que alguma vez
desapareceria. Ele compreendia-a, ela deixara-o porque a desiludira. Não fora, de
modo algum, propositado, mas ainda assim não deixava de parecer uma perfídia.
Era, claro, uma traição ao projecto comum e a toda a dedicação dela ao casamento.
Até ele era capaz de perceber que Clara pensasse assim. João Pedro decidira logo
que não diria nunca a frase não há nada de errado contigo, o problema sou eu,
embora fosse claramente o caso, pois soava-lhe muito parecida com isto não é
o que parece, e só iria sublinhar o sentimento de traição que a consumia.
O facto
de Clara ter voltado a casar com o patrão seis meses depois de se terem
divorciado e depois de o outro ter deixado a mulher e os filhos, parecia não ter
diluído nem um bocadinho a raiva que sentia por ele. Clara acabara de chegar da
lua-de-mel nas ilhas Maurícias com o patrão e, a ajuizar pela atitude
irrevogavelmente distante, nada tinha mudado em relação a ele. João Pedro contemplou
a sala com um misto de desalento e de alívio. Parecia ter passado por ali um furacão,
porém, decidiu não arrumar nada e aproveitar as primeiras horas de liberdade de
qualquer maneira, não interessava como, desde que saísse dali e fosse dar uma volta.
Era domingo,
faltavam três semanas para o Natal e havia uma árvore gigante no Terreiro do Paço,
iluminações ao longo da Avenida da Liberdade, em volta do Marquês de Pombal e um
pouco por todos os bairros de Lisboa. A capital fervilhava com as festas da época:
concertos, animações de rua, fogo-de-artifício, feiras e acções com o comércio
local. João Pedro passava ao lado da maior parte destes eventos, mas apreciava o
espírito de Natal e sentia-se animado ao ver a cidade decorada. Conduzia ao acaso
e em velocidade de passeio o seu velho Volvo a precisar de reforma, do qual não
se desfazia por ser avesso a mudanças e porque, bem, porque se estava
simplesmente nas tintas para o carro. De qualquer modo, quase nunca o usava. Foi
do Restelo até ao Cais do Sodré, seguindo ao lado do rio. Uma bela manhã
invernosa faiscava num Tejo arreliado. As primeiras horas do dia cobriram-se de
pesadas nuvens de má catadura, mas o sol agora já rompia, brilhando alegremente.
Passou
enfim o Terreiro do Paço, o Rossio, subiu ao Marquês e acabou por se decidir pelas
Amoreiras. Imergiu pela rampa do parque de estacionamento do centro comercial
com a ideia feliz de visitar a livraria, comprar um jornal, uma revista de arte,
sentar-se algures a tomar um café e deixar-se ficar o tempo que lhe apetecesse,
sem horas, sem obrigações, em suma, sem responsabilidades. Ia a pensar em Clara
e na sua expressão de rancor, que mudara de imediato, abrindo-se num amplo sorriso
ao ver os filhos. Clara abraçara e beijara muito os filhos, com alegria genuína,
e levara-os para casa bem apertadinhos a si. Tinham partido sem dizer adeus,
embrenhados numa algazarra alegre, distraídos pela urgência de matarem as saudades.
Clara não lhes chamara à atenção para que se despedissem do pai, aliás, também
ela se fora embora sem uma palavra, nem sequer se preocupara com a passagem de testemunho
normal destas ocasiões: a que horas o bebé tomara o último biberão, o anti-histamínico
do irmão, a bomba para a asma do outro, enfim, essas coisas. Mas ela era Clara,
a supermãe, e lá se arranjaria sem a sua ajuda». In Tiago Rebelo, Um Homem
Escandaloso, Edições ASA, 2014, ISBN 978-989-232-876-8.
Cortesia
de EASA/JDACT