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O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
«(…) Está cá o coronel, neste modesto cemitério de vila pequena em que
a maior parcela está sete palmos abaixo do chão, coberta de terra barrenta que
acaba num remate melhor ou pior moldado, depende do obrador, de terra em cima
de terra, uns com uma cruz e o nome do enterrado e outros com uma placa
marmórea com dizeres do ano de procedência e de enterramento, sem nada a encher
o espaço entre as datas como se tivesse pasmado por cá e tivesse deixado passar
o tempo até à guia de marcha para o além, sem um assento sobre o que engenhou e
o que alcançou, nem com quem o fez ou com quem se foi, apenas se assenta que cá
se esteve, de quando a quando, e chega que até já é de mais, cada um que se
inquiete com o que fez porque da história, não nos cemitérios que são apenas
albergues, escrever-se-á apenas o que se pensa que cada um atalhou, mesmo dos
deste familiar jazigo, sem datas, mas acima do chão.
Pensas que não me lembro quando morreste? Foi no dia de hoje, há vinte
e dois anos, fizeste questão de me lembrar. Ela até é parecida contigo, riu-se
para mim, mas devias ser tu a chincar de mim. Ainda não me perdoaste por ser
republicano? Com muito orgulho devo dizer-te. Vês como o nosso país está muito
melhor? Mais desenvolvido, mais disciplinado, mais cívico... Melhor do que o
teu, que estava sempre agarrado ao passado e não andava para a frente. Pensavas
que faziam melhor? Agora temos um líder melhor do que todos os reis que
tivemos, que cuida do nosso país e das nossas possessões com dedicação e
devoção. Tens visto? Eu não queria que morresses, queria que continuasses aqui
comigo, fizeste-me muita falta, não tínhamos as mesmas ideias, só isso, mas não
era preciso zombares de mim. Falhei. Não tive nenhum macho como tu. Tu sabes que
eu queria muito um, era o que mais queria, mas não, tinhas de te meter, não é?
Fica sabendo que tenho cinco filhas lindas e que sou um bom pai para elas e
serão todas melhores do que todos os teus filhos, desabafa o coronel a arejar
as palavras amarradas há demasiado tempo no fundo do lugarejo onde se arrecadam
as frases que fazem as verdades que se querem dizer. Crê o coronel que o
problema não está em dona Margarida e que a sua desfeita é provocada pelo pai
que há vinte e dois anos descansa em paz, no cemitério da vila, sem pedir nem
perguntar nada, com visitas escassas no dia dos fiéis, não procuradas por ele
porque nesses dias vai quem quer e lhe convém ou saber-se-ia se algum defunto
pedisse que se lá fosse no dia dos mortos ou em qualquer outro se não fossem todos
iguais. Cuida o nosso coronel que assim é, já vai a sair do cemitério sem olhar
para trás. É o pai, claro que sim, que não deixou, no aniversário do seu
passamento, de lhe manifestar que não lhe perdoa pelo republicanismo e pela
traição. Porque um filho que atraiçoa um pai não merece absolvição. Essa, só
Deus pode conceder... se quiser. Continue a descansar em paz o major António
Silveira e deixe seu filho embarcado nesses pensamentos porque se bem não lhe
fica mal também não.
Chega a casa o nosso coronel, meditabundo, trazido pelo motorista, o
Albino, porque um coronel é conduzido, não conduz, a não ser no campo de
batalha. Aí quem manda é ele, nos que estão abaixo da posição, bem certo, e que
não são poucos. Sai do carro sem abrir boca nem para um agradecido obrigado.
Não faz falta, obrigado já o motorista é a transportar os da casa para onde lhes
aprouver, é essa a sua função, todos temos uma e não têm de nos agradecer por
cumprir o que tem de ser. Passa pela porta frontal, mas não entra, decide ir
dar a volta ao solar, entrar pela cozinha. Por que não? É a sua casa, pode
entrar por onde quiser e o que não é habitual não quer dizer que seja proibido,
pela porta das traseiras vai entrar, aquela que dá para a cozinha, ver se lá
está Conceição Genoveva, que bem precisa dos seus habituados serviços. Súbita
vontade, porque essas vêm e vão conforme entendem e não acatam ordens, nem
mesmo de militar. É preciso desafogar. Está a chegar o coronel à porta traseira
da cozinha, mas fica-se pelo abrir e detém-se na intenção. Ouve-se qualquer coisa,
um vagido abafado, parece criança. Ele sabe que não, conhece aquela forma de gemer.
Vai entrando de atalaia, feito bufo que vai ouvir para contar, perdoe-nos o nosso
coronel a aleivosia, não tornaremos a fazê-lo, não merece tal vileza neste escrito
já que não faz nada de mal, a casa é sua e até tenta não apoquentar quem tal
gemido atiça em ânsia de não ser achado. Ou será de desespero e dor e quer ser
encontrado? A resposta se verá e, na dúvida, o melhor é manter-se incógnito,
não vá estragar o ambiente a algum subalterno ou alguns, porque normalmente é
proveitoso que sejam dois, mas podem ser mais, se bem que um também faz o
trabalho. E para os que de nós perversos forem satisfaçam o apetite, porque o coronel
já desvendou o enigma, é Conceição Genoveva que está a cortar o bacalhau
enquanto a Gracinda segura. Ela corta, a outra segura, ela corta, a outra segura,
mas o raio do animalejo é duro como cornos, como é costume dizer, e Conceição
Genoveva geme do esforço da tarefa porque a faca cega encrava a cada impulso e
nada disso tem que ver com dor e prazer muito menos». In Luís Miguel Rocha, Um País
Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.
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