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Maio
de 1517 a Junho de 1522
«(…)
Tu vieste ajudar-me, sussurrou ele. Não havia ninguém, mas apareceste tu. Como posso
ter medo quando tenho uno àngelo, um
anjo a meu lado? Honor ouviu passos e imobilizou-se. A Lua tinha-se escondido outra
vez atrás das nuvens, de maneira que ela não conseguia ver grande coisa, mas conseguia
ouvir vozes graves, vozes de homem, apesar de não distinguir o que estavam a dizer.
O moribundo também as ouviu. O corpo sofreu um espasmo. Dentro..., da minha túnica,
sussurrou. Piccolo àngelo... Pega. Estava
a cuspir sangue. Pega! Depressa! Honor ajoelhou-se e meteu-lhe a mão dentro da única,
de onde tirou um livrinho, pouco maior do que a mão de um homem. Escrevi-o, disse
ele, e brilhavam-lhe os olhos, como que de alegria, para ti. Para mim?, perguntou
ela, encantada, embora o comentário fosse absurdo, porque eles não se conheciam.
E ela nem sequer sabia ler. Mas nunca..., nunca mostres isso a um padre! O
homem tossiu. Honor encolheu-se, ao sentir o sangue quente salpicar-lhe as mãos.
Compreendeste? Nunca..., a um padre! É um segredo?, sussurrou ela. Si, piccolo àngelo, respondeu ele, um
sorriso sereno formando-se-lhe nos lábios. É um segredo...
O sangue
jorrava-lhe agora em borbotões. A cabeça pendeu-lhe, os olhos mortos fixando-a,
muito abertos. Mas Honor não se sentiu horrorizada. Apesar da violência de que fora
objecto, tinha morrido de forma pacífica. Algures por aqui... Era uma voz masculina.
Duas formas escuras dobravam a esquina da rua da casa assaltada. Honor meteu o livro
pela manga larga e acocorou-se, observando os homens que se aproximavam. Vinham
aos pontapés ao lixo. Tens à certeza de que ele trazia uma bolsa?, resmoneou um
deles. Vi-lha no cinto quando ele caiu, insistiu o outro. E os anéis? Também lhe
corto os anéis? Corta-lhe os tomates, se for preciso, mas não deixes lá ficar a
bolsa. Por fim, o segundo homem avistou o corpo e apontou com um dedo: está
ali! E acorreram ambos. Quando estavam a poucos passos do corpo caído, o segundo
homem deteve-se abruptamente e esticou o braço para deter o primeiro. Raios, lá
está aquela miúda!
Rapando
dos punhais, os dois homens avançaram para ela. Honor levantou-se de um salto, preparada
para fugir. Foi então que sentiu um braço forte agarrá-la por trás e, levantando-a
pela cintura, voltá-la ao contrário e pô-la ao ombro. Honor viu-se dobrada ao meio,
de tal maneira que apenas conseguia avistar os saltos das botas do seu raptor, que
corria pela rua a grande velocidade, enquanto ela se esforçava por respirar. Foi
assim transportada durante meio quarteirão, após o que o homem se meteu por uma
viela e, parando a corrida, a ergueu novamente ao ar com rudeza, apertando-lhe as
costelas. Enfurecida pelo medo, de olhos fechados, ela tentou bater-lhe com os punhos
nos olhos, mas ele não teve qualquer dificuldade em lhos manter à distância. Qu'é
que está a fazer? gritou ele. Ralph!, exclamou ela, abrindo os olhos. Depois,
lançou-lhe os braços ao pescoço, encostando a cara à face áspera dele. Oh, Ralph,
prosseguiu, meio engasgada, eles assaltaram as casas! E empurraram aquele estrangeiro
da janela abaixo, e ele caiu e partiu-se todo! E aqueles ladrões queriam
matar-me e...
Pronto,
menina. Eu estou aqui. E, encostando-lhe uma mão à parte de trás do pescoço, abraçou-a
com a outra. Pronto, já passou. E começou a andar com rapidez. Era manteve-se bem
encostada a ele, deixando-se embeber pelo odor reconfortante daquele corpete de
couro já muito usado que tão bem conhecia, e sentindo-se realmente segura nos
braços dele. Aos dezanove anos, Ralph Pepperton tinha mais de um metro e oitenta
e era forte como um tronco de árvore. Margaret, a ama, dissera-lhe certa vez, e
não sem orgulho, que Ralph nunca saíra vencido de uma rixa. Na Festa da Anunciação,
ele tinha saltado o muro do jardim do vizinho para ir fazer uma visita à bela
criada de dentro da casa ao lado, e vira-se envolvido com dois servos da mesma casal
o certo é que os criados de ambos os lados tinham apostado na vitória de Ralph...
É um touro com duas patas, fora o comentário que o pai de Honor fizera nesse dia
sobre ele, embolsando os lucros que ele lhe proporcionara. Ralph avançava pela viela
escura, em direcção ao brilho das tochas que se avistava em Cheapside, uma via
bem mais ampla.
Que
noite!, resmungou, circulando por entre ossos e dejectos. Realmente, o primeiro
de Maio é para a gente se divertir, mas desta vez os aprendizes foram longe de
mais. Assaltaram a prisão de Newgate e soltaram os presos. E agora andam a incendiar
as casas de Lombard Street. E vi uns quantos perseguirem um francês até ao alto
do campanário de Santa Maria, como quem persegue uma ratazana; depois
arrastaram-no cá para
baixo
e atiraram-se a ele. E continuava a falar como se quisesse acalmá-la, embora a voz
dele fervesse de indignação. Concedo que os aprendizes têm alguma razão de queixa
dos estrangeiros, mas valha-me Deus, esta noite cometeram-se muitos pecados, e de
peso. E eles hão-de pagar por isso, tão certo como haver jejum na Quaresma. Mas
não tenha medo, menina, murmurou, aqui comigo ninguém lhe faz mal. Ela abraçou-o
com toda a força, mas quando ele a apertou a si estremeceu, pois ainda estava dorida
do ataque do aprendiz. Ralph deteve-se por baixo de uma janela aonde tremeluzia
uma vela e, afastando-a de si, examinou-lhe rapidamente a cara e os braços enlameados.
Mas o que foi que a fez sair de casa numa noite destas?, perguntou ele, e a voz
tremia-lhe com uma indignação que ela nunca lhe tinha ouvido. Como é que foi sair
numa noite maldita como esta? E, vendo que ela se calava e fazia beicinho, abanou-a
como se quisesse obrigá-la a responder. Pára com isso, Ralph Pepperton! Não consinto
que voltem a abanar-me!, exclamou ela de lágrimas nos olhos. Larga-me!» In
Barbara Kyle, A Aia da Rainha, 2008, tradução de Maria José Figueiredo, Planeta
Manuscrito, 2009/2010, Lisboa, ISBN 978-989-657-058-3.
Cortesia
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