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«(…) Pôs-se
de pé e encaminhou-se para a parte posterior do navio. Viu a luz, comandante? A
figura atarracada à roda do leme permaneceu imóvel. O comandante nem sequer
virou a cabeça na sua direcção. Nos últimos tempos tem havido piratas
holandeses activos por estas bandas. É possível que sejam eles a trocar sinais,
para nos apanharem desprevenidos, disse Antero. São as fogueiras, junto à
costa, que assinalam o acesso ao Tejo. Tem a certeza? A tempestade afastou-nos
da rota. Não é a primeira vez que navego para Lisboa. Nem eu, pensou Antero.
Teve de reprimir a resposta. É certo que preferia usar o porto da cidade do
Porto para os seus negócios, mas Lisboa era a sua terra natal. Dispunha de bons
contactos na capital. A densa barba que deixara crescer, bem como a pele
tisnada do Sol e da presença no mar, haviam-lhe modificado o aspecto. Desde que
não negligenciasse a necessidade de ter uma certa cautela, poderia
despreocupadamente visitar os seus parceiros de negócios. Viajara já de Exeter
para Lisboa, de Dartmouth, Plymouth, Ipswich e Yarmouth. E, claro, também de Londres,
como desta vez. A nossa carga teria interesse para piratas. Poderiam ter sido
avisados. Os piratas interessam-se é por ouro e prata, não querem saber de
tapetes de lã e meias. O tom resmunguento das respostas do comandante não lhe
agradou. Estaria com dúvidas? Uma palavra irreflectida diante das autoridades
portuárias e o empreendimento de ambos estaria arruinado. E então o tecido de twill
que foi carregado e aquele requintado pano negro? Os tecidos ingleses
vendem-se sempre muito bem, o comandante permaneceu em silêncio. Não dormiu a
noite toda, pois não? Dormi quatro horas. O meu timoneiro é um homem de
confiança.
O convés
do navio não era um bom local para se falar de coisas secretas. Por todo o lado
andavam os marinheiros a afadigarem-se, lá em cima nas vergas, na popa, na proa
ou junto dele, porventura até mesmo no exterior do navio, a verificar o
costado, a ver se o casco não ficara danificado pela tempestade. Tinha de falar
com o comandante, mas sem que ninguém os escutasse. Faz-lhe diferença que eu vá
num instante ver a minha mercadoria? Receio que possa ter ficado molhada. A
minha cabina está seca. A sua mercadoria está em óptimas condições. Teria ele
entendido? Ainda assim, deixe-me dar uma vista de olhos. Ficaria bem mais
tranquilo. Sem dizer palavra, o comandante ergueu as mãos da roda do leme e
estendeu-lhe uma chave que se encontrava presa numa fita em redor do pescoço.
Segurava a fita acima da cabeça. Antero aceitou a chave e pegou no lampião, que
emitia uma luminosidade débil, pendurado junto ao comandante, na superstrutura
por baixo da vela da mezena. Posso…?
Mexeu na
rodinha metálica de modo a fazer subir a mecha. De imediato ficou tudo mais
claro. As velas devolveram o brilho da luz umas às outras. Estavam enfunadas, o
Fortune navegava a bom ritmo. Quando a tempestade se começara a fazer
sentir, as velas haviam sido recolhidas para que não se rasgassem. Os
marinheiros deveriam ter voltado a subi-las enquanto ele dormia, as grandes
velas quadradas, de través, cinco em cada um dos dois mastros mais à frente, e
as velas da mezena, inclinadas e dispostas longitudinalmente. Dois homens
continuavam ainda empoleirados nas velas quadradas a verificar a tensão das
escotas. Cheirava a sargaço. Sobre as tábuas do convés havia poças de água
lamacenta, que reflectiam a luz do lampião, e algas espalhadas. A tempestade
deveria tê-las arrancado ao fundo do mar. Ouviam-se gargalhadas, vindas do
refeitório da tripulação. Os marinheiros deveriam estar a comer e iam dizendo
graçolas. Soava como se sentissem aliviados por ter escapado com vida à
tempestade. Talvez o comandante, para festejar, mandasse distribuir uma dose
extra de rum.
Antero
desceu a escada que conduzia à cabina do comandante. A peça mais luxuosa da
cabina era uma cómoda bojuda, dotada de ferragens chanfradas. As gavetas de
madeira apresentavam-se enceradas e, iluminadas pela luz do lampião, brilhavam.
Por cima da cómoda estava pendurado um mapa dos territórios britânicos da
América do Norte. Fora o mapa que, há duas semanas, aquando do primeiro
contacto, havia revelado a Antero que o comandante seria subornável. Sonhava
poder vir, na sua velhice, a estabelecer-se nos territórios ultramarinos». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa,
2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
Cortesia
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