terça-feira, 14 de junho de 2016

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «As velas devolveram o brilho da luz umas às outras. Estavam enfunadas, o “Fortune” navegava a bom ritmo. Quando a tempestade se começara a fazer sentir, as velas haviam sido recolhidas para que não se rasgassem»

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«(…) Pôs-se de pé e encaminhou-se para a parte posterior do navio. Viu a luz, comandante? A figura atarracada à roda do leme permaneceu imóvel. O comandante nem sequer virou a cabeça na sua direcção. Nos últimos tempos tem havido piratas holandeses activos por estas bandas. É possível que sejam eles a trocar sinais, para nos apanharem desprevenidos, disse Antero. São as fogueiras, junto à costa, que assinalam o acesso ao Tejo. Tem a certeza? A tempestade afastou-nos da rota. Não é a primeira vez que navego para Lisboa. Nem eu, pensou Antero. Teve de reprimir a resposta. É certo que preferia usar o porto da cidade do Porto para os seus negócios, mas Lisboa era a sua terra natal. Dispunha de bons contactos na capital. A densa barba que deixara crescer, bem como a pele tisnada do Sol e da presença no mar, haviam-lhe modificado o aspecto. Desde que não negligenciasse a necessidade de ter uma certa cautela, poderia despreocupadamente visitar os seus parceiros de negócios. Viajara já de Exeter para Lisboa, de Dartmouth, Plymouth, Ipswich e Yarmouth. E, claro, também de Londres, como desta vez. A nossa carga teria interesse para piratas. Poderiam ter sido avisados. Os piratas interessam-se é por ouro e prata, não querem saber de tapetes de lã e meias. O tom resmunguento das respostas do comandante não lhe agradou. Estaria com dúvidas? Uma palavra irreflectida diante das autoridades portuárias e o empreendimento de ambos estaria arruinado. E então o tecido de twill que foi carregado e aquele requintado pano negro? Os tecidos ingleses vendem-se sempre muito bem, o comandante permaneceu em silêncio. Não dormiu a noite toda, pois não? Dormi quatro horas. O meu timoneiro é um homem de confiança.
O convés do navio não era um bom local para se falar de coisas secretas. Por todo o lado andavam os marinheiros a afadigarem-se, lá em cima nas vergas, na popa, na proa ou junto dele, porventura até mesmo no exterior do navio, a verificar o costado, a ver se o casco não ficara danificado pela tempestade. Tinha de falar com o comandante, mas sem que ninguém os escutasse. Faz-lhe diferença que eu vá num instante ver a minha mercadoria? Receio que possa ter ficado molhada. A minha cabina está seca. A sua mercadoria está em óptimas condições. Teria ele entendido? Ainda assim, deixe-me dar uma vista de olhos. Ficaria bem mais tranquilo. Sem dizer palavra, o comandante ergueu as mãos da roda do leme e estendeu-lhe uma chave que se encontrava presa numa fita em redor do pescoço. Segurava a fita acima da cabeça. Antero aceitou a chave e pegou no lampião, que emitia uma luminosidade débil, pendurado junto ao comandante, na superstrutura por baixo da vela da mezena. Posso…?
Mexeu na rodinha metálica de modo a fazer subir a mecha. De imediato ficou tudo mais claro. As velas devolveram o brilho da luz umas às outras. Estavam enfunadas, o Fortune navegava a bom ritmo. Quando a tempestade se começara a fazer sentir, as velas haviam sido recolhidas para que não se rasgassem. Os marinheiros deveriam ter voltado a subi-las enquanto ele dormia, as grandes velas quadradas, de través, cinco em cada um dos dois mastros mais à frente, e as velas da mezena, inclinadas e dispostas longitudinalmente. Dois homens continuavam ainda empoleirados nas velas quadradas a verificar a tensão das escotas. Cheirava a sargaço. Sobre as tábuas do convés havia poças de água lamacenta, que reflectiam a luz do lampião, e algas espalhadas. A tempestade deveria tê-las arrancado ao fundo do mar. Ouviam-se gargalhadas, vindas do refeitório da tripulação. Os marinheiros deveriam estar a comer e iam dizendo graçolas. Soava como se sentissem aliviados por ter escapado com vida à tempestade. Talvez o comandante, para festejar, mandasse distribuir uma dose extra de rum.
Antero desceu a escada que conduzia à cabina do comandante. A peça mais luxuosa da cabina era uma cómoda bojuda, dotada de ferragens chanfradas. As gavetas de madeira apresentavam-se enceradas e, iluminadas pela luz do lampião, brilhavam. Por cima da cómoda estava pendurado um mapa dos territórios britânicos da América do Norte. Fora o mapa que, há duas semanas, aquando do primeiro contacto, havia revelado a Antero que o comandante seria subornável. Sonhava poder vir, na sua velhice, a estabelecer-se nos territórios ultramarinos». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

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