sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Paixão do imperador. Mary del Priore. «… os irmãos Domingos e Luísa eram protegidos de feitiços. O uso de arruda entre os lençóis do berço também era comum. Se tinham algum problema de saúde, a primeira preocupação era saber se estavam embruxados»

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O nascimento da camaleoa
«(…) Enquanto a menina dormia o primeiro sono, escravas envoltas em seus panos-da-costa, pulseiras de ouro, turbantes brancos ou azuis ofereciam, desde cedo, seus quitutes nos tabuleiros. Em meio aos fiéis, carregadores transportavam na cabeça e nos ombros todo tipo de objectos: de barris de vinho e água a cestos com animais vivos. Gritos de trabalho enchiam o ar. Nas esquinas, se acendiam os fogareiros para aquecer as grandes panelas de mingau de milho e tapioca. O acaçá quente, de farinha de arroz, perfumava as calçadas. Aqui e ali, um barbeiro ambulante aparava gaforinhas e barbas. No sobrado alto e imponente onde a menina nasceu, as janelas abertas absorviam a música da cidade em festa. Com as paredes coloridas e as portas emolduradas por azulejos trazidos de Portugal, a construção ficava na Cidade Alta e era rodeada por um jardim gigantesco. Da esplanada onde estava localizada, gozava-se do panorama de toda a baía. Nos fundos, dando para as encostas abruptas, as galinhas ciscavam entre bananeiras e pés de mandioca. A cidade na qual nasceu Luísa era lindíssima. A densa vegetação entremeada com construções estendia-se até o extremo onde ficava a Igreja de Santo António da Barra. Os morros se esfumando e a baía, com suas ilhas, ofereciam aos olhos um panorama sem igual. A Cidade Baixa impressionava pelo mercado, muito semelhante aos da costa da África. Entre pirâmides de frutas e legumes, sentavam-se vendedoras com trajes das mais diversas cores. Escravos seminus trabalhavam activamente, carregando e descarregando as frutas e gaiolas. O brilho das conversas, o chiar dos papagaios e outros bichos de pena, o riso das mulheres e o grito dos patrões enchiam os ares. Nas praias, canoas descarregavam peixes. Cheios de produtos variados, o grande número de barcos, lanchas, saveiros e outros tipos de embarcações agitavam as águas.
A pequena tinha um ano quando estourou, em Recife, a maior insurreição que o mundo luso-brasileiro conhecera até então. Alguns factores se transformaram no estopim da bomba. Houve uma crise na produção açucareira à qual se somou uma grande seca que varreu a região. Além disso, os pernambucanos tinham a sensação de que os altos impostos que pagavam serviam apenas para financiar a Corte lusa no Rio. Tudo resultou num caldeirão onde prevalecia a ideia de que os portugueses exploravam a nobreza da terra. Nas missas passou-se a usar cachaça, no lugar do vinho, e mandioca, no da hóstia, para afirmar o sentimento de natividade. Houve até quem tentasse recrutar soldados de Napoleão para lutar em favor de uma república no Nordeste. E a história acabou mal. Em menos de três meses, os revolucionários que tinham ocupado a capital pernambucana foram apeados do poder por tropas portuguesas. Má peste persiga tal canalha que quer viver do suor alheio, imprecava a Gazeta da Bahia. Quatro líderes foram executados e o editorialista se felicitava: levantemos as mãos ao céu, por se haver acabado este fatal desastre sem que fosse preciso arrasar Recife.
Na Bahia, a situação também estava longe de ser tranquila. Certo mal-estar se instalara desde a transferência da sede do governo de Salvador para o Rio. E este sentimento, combinado com outros factores, tendia a aumentar o desejo de um governo diferente. Um governo constitucional mais sensível às necessidades das diferentes regiões e que seria encarregado de distribuir todos os benefícios concentrados na capital. Na falta desse governo, contudo, um cheiro de guerra civil se espalhava no ar. Enquanto esse sentimento se alastrava, a menina se agarrava ao peito da ama-de-leite, e Domingos, seu irmão, começava a dar, sozinho, os primeiros passos. A diferença de idade era pequena. Os pais tinham-se casado havia apenas dois anos. Ambos os irmãos foram amamentados por escravas, localizadas em anúncios de jornal como tantos que eram publicados: limpa, de bom corpo e parida há um mês. Em geral, essas mulheres portavam contas de louça em branco leitoso ao pescoço, para garantir que o leite não secasse. Além disto, alimentavam as crianças, desde muito pequenas, com comida que mascavam antes para amolecer. Enfim, uma alimentação à base de creme de arroz e fubá procurava proteger os irmãos das epidemias tão comuns nas cidades litorâneas. Luísa foi logo baptizada.
O prazo para a cerimónia era de oito dias. Temia-se que a inocente morresse do mal-de-sete-dias, indo directo para o limbo sem passar pelo purgatório. O baptismo consistia não somente num rito de purificação e de promessa de fidelidade ao credo católico, mas também era uma forma de comemorar a entrada da criança nas estruturas familiares e sociais. Com roupa branca bordada e os enfeites de fitas de diversas cores, a menina foi, nos braços da madrinha, a avó Luisa Rosa Gouveia Portugal, para a pia baptismal. A cerimónia foi administrada no oratório da casa por um amigo da família, o padre Mestre Joaquim São Simplício. Seguiu-se uma animada reunião que terminou num chá. Nas semanas seguintes, o sino da porta da casa tocou muitas vezes, accionado por escravos. A mensagem era sempre a mesma: sinhô branco manda uns presente.
Como tantas crianças nascidas na mesma época, os irmãos Domingos e Luísa eram protegidos de feitiços, graças a defumadouros na casa. O uso de arruda entre os lençóis do berço também era comum. Se tinham algum problema de saúde, a primeira preocupação era saber se estavam embruxados. Para descobrir, bastava pegar um vaso cheio d'água e colocá-lo debaixo dos cueiros ou do berço, com um ovo dentro. Se o ovo boiasse, era certo ter quebranto. Eram então benzidos em jejum, durante três dias, com raminhos de arruda, guiné ou jurumeira. Como tantas outras crianças, sofreram as doenças infantis mais comuns, sarna, impingem, sarampo, lombrigas. Foram tratados com óleos santos e orações em verso:

Pedro e Paulo foram a Roma
e Jesus Cristo encontrou
este lhe perguntou
então, que há por lá?
Senhor, erisipela má.
Benze-a com azeite e logo te sarará.

Cedo começou o aprendizado dos dois. Maria do Carmo era a primeira professora. Usavam-se, então, cartilhas de alfabetização e de religião que ensinavam a rezar o pai-nosso, a ave-maria e a repetir as sílabas. Depois se lhes ensinava a escrever as orações, a seguir os artigos, preposições e, finalmente, os verbos. Cercados de livros na enorme biblioteca do pai, os irmãos avançavam rapidamente no aprendizado. Luísa fazia exercícios de caligrafia, decorava a tabuada e tinha lições. Entre elas, fazer o bem e temer a Deus. Seus brinquedos preferidos? As bonecas de porcelana vindas de Paris. Ou as bruxas de pano, com cabelos naturais, unhas de escamas ou cânulas de penas. Sabia recitar o Magnificat, o Ave Maris Stella e o ofício de Nossa Senhora, que repetia com as mucamas, de manhã e à tarde. Não lhe era permitido sentar-se à mesa sem dar graças a Deus pelo alimento. Ai da mucama que se descuidasse em corrigir a menina! Recebia castigo com vara de marmelo. Na hora de ir à missa, seguia com os pais, o irmão e as escravas de dentro da casa, vestidas com o mesmo luxo de Maria do Carmo, pelas ruas íngremes da cidade». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.

Cortesia de Objetiva/JDACT