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O
nascimento da camaleoa
«(…)
Enquanto a menina dormia o primeiro sono, escravas envoltas em seus
panos-da-costa, pulseiras de ouro, turbantes brancos ou azuis ofereciam, desde
cedo, seus quitutes nos tabuleiros. Em meio aos fiéis, carregadores
transportavam na cabeça e nos ombros todo tipo de objectos: de barris de vinho
e água a cestos com animais vivos. Gritos de trabalho enchiam o ar. Nas
esquinas, se acendiam os fogareiros para aquecer as grandes panelas de mingau
de milho e tapioca. O acaçá quente, de farinha de arroz, perfumava as calçadas.
Aqui e ali, um barbeiro ambulante aparava gaforinhas e barbas. No sobrado alto
e imponente onde a menina nasceu, as janelas abertas absorviam a música da cidade
em festa. Com as paredes coloridas e as portas emolduradas por azulejos trazidos
de Portugal, a construção ficava na Cidade Alta e era rodeada por um jardim
gigantesco. Da esplanada onde estava localizada, gozava-se do panorama de toda
a baía. Nos fundos, dando para as encostas abruptas, as galinhas ciscavam entre
bananeiras e pés de mandioca. A cidade na qual nasceu Luísa era lindíssima. A
densa vegetação entremeada com construções estendia-se até o extremo onde
ficava a Igreja de Santo António da Barra. Os morros se esfumando e a baía, com
suas ilhas, ofereciam aos olhos um panorama sem igual. A Cidade Baixa
impressionava pelo mercado, muito semelhante aos da costa da África. Entre
pirâmides de frutas e legumes, sentavam-se vendedoras com trajes das mais
diversas cores. Escravos seminus trabalhavam activamente, carregando e
descarregando as frutas e gaiolas. O brilho das conversas, o chiar dos papagaios
e outros bichos de pena, o riso das mulheres e o grito dos patrões enchiam os
ares. Nas praias, canoas descarregavam peixes. Cheios de produtos variados, o
grande número de barcos, lanchas, saveiros e outros tipos de embarcações
agitavam as águas.
A
pequena tinha um ano quando estourou, em Recife, a maior insurreição que o
mundo luso-brasileiro conhecera até então. Alguns factores se transformaram no
estopim da bomba. Houve uma crise na produção açucareira à qual se somou uma
grande seca que varreu a região. Além disso, os pernambucanos tinham a sensação
de que os altos impostos que pagavam serviam apenas para financiar a Corte lusa
no Rio. Tudo resultou num caldeirão onde prevalecia a ideia de que os portugueses
exploravam a nobreza da terra. Nas missas passou-se a usar cachaça, no lugar do
vinho, e mandioca, no da hóstia, para afirmar o sentimento de natividade. Houve
até quem tentasse recrutar soldados de Napoleão para lutar em favor de uma
república no Nordeste. E a história acabou mal. Em menos de três meses, os
revolucionários que tinham ocupado a capital pernambucana foram apeados do
poder por tropas portuguesas. Má peste persiga tal canalha que quer viver do
suor alheio, imprecava a Gazeta da Bahia. Quatro líderes foram
executados e o editorialista se felicitava: levantemos as mãos ao céu, por se
haver acabado este fatal desastre sem que fosse preciso arrasar Recife.
Na
Bahia, a situação também estava longe de ser tranquila. Certo mal-estar se
instalara desde a transferência da sede do governo de Salvador para o Rio. E
este sentimento, combinado com outros factores, tendia a aumentar o desejo de
um governo diferente. Um governo constitucional mais sensível às necessidades
das diferentes regiões e que seria encarregado de distribuir todos os
benefícios concentrados na capital. Na falta desse governo, contudo, um cheiro
de guerra civil se espalhava no ar. Enquanto esse sentimento se alastrava, a
menina se agarrava ao peito da ama-de-leite, e Domingos, seu irmão, começava a
dar, sozinho, os primeiros passos. A diferença de idade era pequena. Os pais
tinham-se casado havia apenas dois anos. Ambos os irmãos foram amamentados por escravas,
localizadas em anúncios de jornal como tantos que eram publicados: limpa, de
bom corpo e parida há um mês. Em geral, essas mulheres portavam contas de louça
em branco leitoso ao pescoço, para garantir que o leite não secasse. Além
disto, alimentavam as crianças, desde muito pequenas, com comida que mascavam
antes para amolecer. Enfim, uma alimentação à base de creme de arroz e fubá
procurava proteger os irmãos das epidemias tão comuns nas cidades litorâneas. Luísa
foi logo baptizada.
O
prazo para a cerimónia era de oito dias. Temia-se que a inocente morresse do
mal-de-sete-dias, indo directo para o limbo sem passar pelo purgatório. O baptismo
consistia não somente num rito de purificação e de promessa de fidelidade ao
credo católico, mas também era uma forma de comemorar a entrada da criança nas
estruturas familiares e sociais. Com roupa branca bordada e os enfeites de
fitas de diversas cores, a menina foi, nos braços da madrinha, a avó Luisa Rosa
Gouveia Portugal, para a pia baptismal. A cerimónia foi administrada no oratório
da casa por um amigo da família, o padre Mestre Joaquim São Simplício.
Seguiu-se uma animada reunião que terminou num chá. Nas semanas seguintes, o
sino da porta da casa tocou muitas vezes, accionado por escravos. A mensagem
era sempre a mesma: sinhô branco manda uns presente.
Como
tantas crianças nascidas na mesma época, os irmãos Domingos e Luísa eram
protegidos de feitiços, graças a defumadouros na casa. O uso de arruda entre os
lençóis do berço também era comum. Se tinham algum problema de saúde, a
primeira preocupação era saber se estavam embruxados. Para descobrir, bastava
pegar um vaso cheio d'água e colocá-lo debaixo dos cueiros ou do berço, com um
ovo dentro. Se o ovo boiasse, era certo ter quebranto. Eram então benzidos em jejum,
durante três dias, com raminhos de arruda, guiné ou jurumeira. Como tantas
outras crianças, sofreram as doenças infantis mais comuns, sarna, impingem,
sarampo, lombrigas. Foram tratados com óleos santos e orações em verso:
Pedro
e Paulo foram a Roma
e
Jesus Cristo encontrou
este
lhe perguntou
então,
que há por lá?
Senhor,
erisipela má.
Benze-a
com azeite e logo te sarará.
Cedo
começou o aprendizado dos dois. Maria do Carmo era a primeira professora.
Usavam-se, então, cartilhas de alfabetização e de religião que ensinavam a
rezar o pai-nosso, a ave-maria e a repetir as sílabas. Depois se lhes ensinava
a escrever as orações, a seguir os artigos, preposições e, finalmente, os
verbos. Cercados de livros na enorme biblioteca do pai, os irmãos avançavam rapidamente
no aprendizado. Luísa fazia exercícios de caligrafia, decorava a tabuada e
tinha lições. Entre elas, fazer o bem e temer a Deus. Seus brinquedos
preferidos? As bonecas de porcelana vindas de Paris. Ou as bruxas de pano, com
cabelos naturais, unhas de escamas ou cânulas de penas. Sabia recitar o Magnificat,
o Ave Maris Stella e o ofício de Nossa Senhora, que repetia com as
mucamas, de manhã e à tarde. Não lhe era permitido sentar-se à mesa sem dar
graças a Deus pelo alimento. Ai da mucama que se descuidasse em corrigir a
menina! Recebia castigo com vara de marmelo. Na hora de ir à missa, seguia com
os pais, o irmão e as escravas de dentro da casa, vestidas com o mesmo luxo de Maria
do Carmo, pelas ruas íngremes da cidade». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A
Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.
Cortesia
de Objetiva/JDACT