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«(…)
Um caçador apanhou uma perdiz. Preparava-se para a matar, roga-lhe a perdiz: deixa-me
viver. Em meu lugar, conseguirei para ti muitas perdizes. Mais uma razão para te
matar, diz o caçador... Porquê?, pergunta a minha incompreensão. O caçador explicou,
diz Íole: … porque queres trair companheiras e amigas... No ar ensonado ouve-se
o balir de ovelhas, o mugir de vacas, trinados de pintassilgos, a flauta do pastor,
o ladrar de cães, o zurrar de um burro... E, quando a tempestade vem desgrenhar
e enfurecer este remanso e assolam a natureza os uivos dos ventos e o ribombo dos
trovões, recolhe-se-me o coração, receoso da zanga dos deuses. Todos estes sons
me entram na alma e o zumbido das abelhas e o harpejar do vento na folhagem das
árvores e o espraiar das ondas na areia, ou o estrondear das vagas contra os rochedos…
Da nossa casa pode ver-se, por cima das muralhas, o porto de mar e lá longe, a sudoeste,
em suaves dias claros, a sombrazinha das montanhas da Grécia e, a nordeste, as da
ilha de Lemnos, uma das forjas do deus Hefesto.
Estamos
no jardim a dançar e a cantar:
… um
ror de folhas de mirto
Um ror
de guirlanclas de rosas...
Chama-nos
a atenção a chegada de um barco. Sai de lá estugado um arauto e corre a bater-nos
à porta de casa: o patrão está?, pergunta ao porteiro. Vai-me por ele ou
leva-me até ele. É urgente. Ainda o porteiro se não tem decidido, vem de dentro
Escamandrónimo em pessoa: que há? Senhor, corremos perigo. Perigo? Quem és tu? Mercador
de Mitilene. Acabo de chegar do continente. O que por lá vai, senhor, naquele golfo
de Sarónico! No Pireu? Armam-se barcos de guerra. Os comerciantes atenienses querem
tomar-nos a feitoria de Sigeu, no Helesponto. Atenas necessita de cereais do Ponto
Euxino. Consultaram os deuses e resolveram recorrer à força. Não tarda venham os
navios de guerra assolar a nossa ilha. Que tempo julgas tu que nos resta para
nos armarmos e defendermos? Aí umas três semanas, um mês... Vai. Navega por noroeste
a avisar, de passagem, as cidades costeiras, Antissa e Metimna. Eu partirei a cavalo,
pelas serras, a falar com os chefes de Mitilene. Avizinha-se a guerra, diz em Mitilene
Escamandrónimo, na assembleia dos chefes das cidades. Éreso terá de enfrentar o
choque do ataque ateniense. Embora autónomas, as nossas cidades devem unir-se para
a defesa, nesta hora de perigo. Escolhamos um general capaz de fazer frente ao general
ateniense Frínon.
Adianta-se
o nobre mitileneu Drácon, que levanta a mão a pedir a palavra: cidadãos de Lesbos!
Apesar de Frínon ser célebre pela sua agilidade de pugilista vencedor de pancrácio,
nós temos connosco o homem de que precisamos... E quem é esse homem? Lá fora a multidão
aguarda o resultado da reunião. Drácon sai por instantes e regressa trazendo
consigo um homem de cerca de quarenta anos, de aparência desleixada no vestir e
na higiene, a barba crespa, cabelos desgrenhados, descobre-lhe o himácio, do lado
direito, a negridão cabeluda de ombro, braço, peito. Pítaco?, pergunta admirado
um dos prítanes de Mitilene. Um plebeu? Quando o ouvirdes falar, reconhecereis o
estratego, o homem trabalhador e inteligente, o soldado valente, capaz de enfrentar
o ateniense Frínon. Fala, Pítaco, diz o chefe dos Mitileneus. Pítaco sobe à tribuna,
ergue a peluda mão de macaco, faz-se silêncio e, com voz tonitroanre e segura, fere
os ares e os corações com estas palavras: ó homens de Lesbos. Um mensageiro veio
até nós com tristes notícias. Zeus, que tem a égide, o enviou a avisar-nos.
Pensávamos estar em tempo de paz, eis nos ameaça luta encarniçada. Já tomei parte
em muitas batalhas de homens, mas nunca vi exército tão forte e belo como o de Atenas.
Aquelas falanges a correr são como revoejo de folhas no outono ou tempestade de
areias nas dunas à beira-mar ou praga de gafanhotos do deserto a dizimar-nos as
searas. Seremos mais valentes e rápidos que eles.
Sem demora
teremos prontas e equipadas de remadores e tropas as naves guerreiras de
terríveis esporões. A infantaria pesada dos hoplitas periecos, de túnica vermelho-púrpura,
para lhes disfarçar o sangue da valentia, com sua temerosa panóplia de escudo, casco
cintilante, couraça protectora, espada e lança, e os garbosos cavaleiros de
barba pontiaguda e cabelos compridos como crinas de cavalos, e os ágeis e perigosos
hilotas de armamento ligeiro, estarão prestes a dar as vidas pela pátria. Seguirão
para o Helesponto a guardar a feitoria, a cerca de cento e quarenta estádios a noroeste
das ruínas de Tróia. Que cada comandante reúna os seus soldados e lhes dê suas ordens
e se ponha à frente dos seus batalhões. Mal nas salpinges soe o toque de
atacar, as falanges avançarão cantando o péan, já pelos ares sibilará chuva de
dardos e reboará o seu grito de guerra: eleleu
iú iú!.... Levarão nos bornais alimento para três dias: pão, queijo, azeitonas,
cebolas, alho...» In Fernando Campos, A Rocha Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011,
ISBN 978-989-672-111-4.
Cortesia
de EObjectiva/Alfaguara/JDACT