quarta-feira, 1 de junho de 2016

Condessa de Barral (1816-1891). Mary del Priore. «O sentimento, por tanto tempo reprimido, tornou-se uma prioridade. Era o romantismo. A literatura falava em expansões da alma e anseios etéreos. Tudo mais espiritual do que físico»


Cortesia de wikipedia e jdact

O nascimento da camaleoa
«(…) Inventora de uma maneira de viver, criadora de uma imagem de si, Luísa modelou o seu destino, sempre insatisfeita com o que lhe foi dado. A sua existência, como a de todos os personagens fascinantes da história, foi marcada por ambiguidades. Ela foi maravilhosa, coquete e amante. Quando quis, no entanto, também foi esposa exemplar. Há pessoas que parecem estar à frente do seu tempo. Luísa foi uma delas. Cresceu num engenho, estudou na Europa, voltou ao Brasil, serviu na corte francesa e depois na brasileira. Viveu entre dois mundos. Um arcaico e outro moderno. Tal como uma heroína romântica foi independente e audaciosa: escolheu o marido, em detrimento do velho amigo do pai que lhe queriam impôr. Enfrentou revoltas das mais variadas: de escravos no Recôncavo baiano e de republicanos e anarquistas na França. Foi abolicionista, antes de quase todo mundo. Fazia alianças e pensava em dinheiro de forma moderna. Era inteligência e espírito, além de extremamente feminina.
Luísa nasceu numa época em que as suas conterrâneas nem saíam nas ruas. Em que, ao cair da tarde, a família encabeçada pela matriarca se reunia para observar o movimento da rua pelas janelas. No máximo, as mulheres expunham-se na varanda dos sobrados, penteando os longos cabelos ou catando piolho, umas das outras, e esperando a hora de rezar as avé-marias. Chamadas senhoras ou donas, tinham como única aspiração o casamento. Casamento com parente, com amigos da família, enfim, com gente igual. Os maridos podiam ser velhos, feios e doentes. Ficar solteira, ou no caritó, como se dizia, era castigo.
Para essas donas, os dias transcorriam lentos, em torno do calendário religioso: festas, missas, novenas. No dia-a-dia, trabalhavam nos bordados, faziam rendas ou bolos para vender. Afora casar, ter filhos e rezar, algumas mulheres desenvolviam uma pequena indústria caseira, para aumentar os proventos: a do preparo da rapadura e do melado; ou a fiação do algodão do qual se faziam roupas de escravos. Também havia a de velas com aproveitamento de sebo de bois; e a do sabão, preparado com gorduras e cinzas de plantas. Elas trabalhavam e ajudavam os maridos, mas poucas estudavam. Luísa faria parte desse grupo? Nunca. Teve uma vida especial. Os pais foram figuras muito singulares na sociedade baiana e o destino da família acabou por transformá-la numa pessoa totalmente atípica. Sobretudo, em se tratando de uma mulher.
Se suas contemporâneas eram convidadas a obedecer, a manter os olhos baixos, a não fazer perguntas e a não desagradar ao sexo oposto, Luísa era o contrário. Dona de personalidade forte, culta, poliglota e elegante, não deixava escolhas: era amada ou detestada. Não se submetia jamais ao despotismo dos homens: nem do pai, nem do marido. Menos ainda ao das mulheres. A sua formação se deu entre os melhores livros e professores, num dos países mais avançados da Europa, a França. Órfã de mãe, muito cedo aliou-se com o pai, que lhe ensinou como funcionava um mundo onde os homens eram reis. Mas Luísa também cresceu numa época de suspiros e langores da alma. De sonhos que inspiravam escritores como Chateaubriand ou Lamartine cuja especialidade era cantar amores sob um céu estrelado. Depois da Revolução Francesa, um novo código se consolidou. O sentimento, por tanto tempo reprimido, tornou-se uma prioridade. Era o romantismo. A literatura falava em expansões da alma e anseios etéreos. Tudo mais espiritual do que físico. A mulher devia ser como uma deusa, colocada sobre um pedestal. Aos seus pés, ajoelhado, o homem enlevado. Este distanciamento alimentava um imaginário feminino focado no pudor. Era proibido olhar-se nua no espelho ou na água do banho. O corpo escondido e protegido por botões, nós e laços suscitava um efeito perverso. O erotismo se fixava no colo, na cintura estreita, no couro das botinas e nos cabelos. Nada de carne, de sexo ou de sangue. Mas palavras e corpos que se procuravam, sem se encontrar. Ternura, generosidade e probidade eram as virtudes esperadas no terreno do coração. Ela encarnou-as todas. E ao amar, inovou. Escolheu o marido que quis, não o que devia. E um amante mais jovem do que ela. A sua força? A mistura de duas culturas, a do engenho baiano e a das ruas de Paris.
O dia em que Luísa nasceu era um Sábado de Aleluia e as negras apregoavam nas ruas pastéis quentes para desenfastiar da Quaresma. Pela manhã, ao som dos primeiros sinos, as ladeiras da Preguiça, Misericórdia e Conceição se enchiam de devotos. Homens e mulheres entravam e saíam das igrejas com palmas bentas nas mãos e já livres das vestes escuras que eram obrigados a usar. As cadeiras de arruar, em madeira leve e cortinas coloridas, serpenteavam, levando sinhôs e iaiás, ricamente vestidos, para a missa. São Salvador da Bahia de Todos os Santos mergulhava nos ruídos de uma cidade em festa. Muito verde e toda em subidas e descidas, ela abrigava uma babel de casas, igrejas, conventos, becos e travessas». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.

Cortesia de Objetiva/JDACT