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Agora tentarão de novo, e pelo menos até à carta roubada hão de chegar, mandam-me
assaltar na rua por falsos carteiristas. Por isso, tenho que me despachar antes
que voltem a tentar, enviar a disquete para um endereço de uma caixa postal e, depois,
ver quando a ir recolher. Mas que parvoíces me passam pela cabeça, aqui já houve
um morto e Simei desapareceu sem deixar rasto. Eles nem querem saber se sei, e
o é que sei. Por prudência, eliminam-me, e a coisa acaba aí. Nem sequer posso ir
pôr nos jornais que não sabia nada sobre o assunto, Porque ao dizer isso já mostro
saber que sabia. Como é que me meti nesta encrenca? Acho que a culpa é do professor
Di Samis e do facto de eu saber alemão. Porque me vem à mente Di Samis, uma
questão de há quarenta anos? É que continuei sempre a pensar que foi por culpa de
Di Samis que não me cheguei a licenciar, e se acabei por cair nesta intriga foi
por nunca me ter licenciado. Aliás, Anna abandonou-me depois de dois anos de casamento
porque se apercebeu de que, palavras suas, eu era um perdedor compulsivo, sabe-se
lá o que lhe terei contado antes, para me armar em bom.
Nunca
me licenciei porque sabia alemão. A minha avó era do sul do Tirol e obrigara-me
a falá-lo desde criança. A partir do primeiro ano da universidade, para me
sustentar nos estudos, aceitara traduzir livros do alemão. Naquela época, saber
alemão era já uma profissão. Liam-se e traduziam-se livros que os outros não compreendiam
(e que, então, eram considerados importantes), e éramos mais bem pagos do que para
o francês e mesmo para o inglês. Hoje, penso que acontece a mesma coisa a quem sabe
o chinês ou o russo. Em qualquer caso, ou traduzes do alemão ou te licencias,
não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Com efeito, traduzir significa
ficar em casa, ao calor ou ao frio, e trabalhar de chinelos, além do mais, aprendendo
uma quantidade de coisas. Para quê frequentar as aulas na universidade?
Por preguiça,
decidira inscrever-me num curso de alemão. Teria de estudar pouco, dizia para mim
mesmo, afinal já sei tudo. O luminar era, naquela época, o professor Di Samis, que
criara aquilo a que os estudantes chamavam o seu ninho da águia, dentro de um palácio
barroco em ruínas, onde se subia por uma escadaria e se chegava a um grande átrio.
De um lado, abria-se o instituto de Di Samis, do outro era a aula magna, como
lhe chamava pomposamente Di Samis, isto é, uma sala de aula que tinha uns cinquenta
lugares. Só se podia entrar no instituto calçando os chinelos. À entrada, havia
em número suficiente para os assistentes e dois ou três alunos. Quem ficava sem
chinelos esperava a sua vez do lado de fora. Tudo estava encerado, creio que
também os livros nas paredes. Até a cara dos assistentes, velhíssimos, que desde
tempos pré-históricos esperavam a sua vez para chegar à cátedra.
A sala
tinha uma abóbada altíssima e janelas góticas (nunca percebi porquê, num palácio
barroco) e vitrais verdes. À hora certa, isto é, à uma e catorze, o professor
Di Samis saía do instituto, seguido, a um metro, pelo assistente maís velho e, a
dois metros, pelos mais jovens, abaixo dos cinquenta. O assistente mais velho carregava-lhe
os livros, os jovens, o gravador, os gravadores, no fim dos anos cinquenta, eram
ainda enormes, pareciam um Rolls Royce. Di
Samis percorria os dez metros que separavam o instituto da sala de aula como se
fossem vinte: não seguia uma linha recta, mas uma curva, não sei se uma
parábola ou uma elipse, dizendo em voz alta, cá estamos, cá estamos!, depois entrava
na sala de aula e sentava-se numa espécie de pódio esculpido, era de esperar que
começasse com chamai-me Ismael. Através dos vitrais, a luz verde tornava cadavérico
o seu rosto que sorria, maligno, enquanto os assistentes activavam o gravador.
Então começava: ao contrário do que disse recentemente o meu valoroso colega
professor Bocardo..., e por aí fora, durante duas horas». In Umberto Eco, Número Zero,
2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-616-643-4.
Cortesia
de Gradiva/JDACT