quinta-feira, 23 de junho de 2016

O Rapto de Dona Mécia. Alexandre Borges. «Finalmente, pensou, em sentido literal e metafórico, um papa que falava a mesma língua do que ele. Mas, 11 meses depois, o tecto do quarto de João XXI, no Palácio de Viterbo, desabou sobre Sua Santidade. Era muito azar»

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Sancho II e dona Mécia
«(…) Tinha muito amor para dar, este novo rei de Portugal. Tanto que se permitira apaixonar por esta Beatriz, uma criança de nove anos que era filha do rei Afonso X, esse que ainda há pouco combatera ao lado de Sancho II contra os avanços deste que era agora seu genro. E veja-se, coincidência das coincidências, isto junta-se o útil ao agradável, este casamento permitia assim a Afonso III de Portugal uma saudável aliança com Castela, assegurando as pazes entre os reinos e garantindo que os vizinhos do lado de lá deixavam de lhe disputar a parte do Guadiana que até ali haviam reclamado. Ah! E mais uma coisa: Afonso III era primo direito do avô da mulher. Isto é, ele e a pequena Beatriz ainda eram primos. Tínhamos, portanto, um rei que depusera o irmão e lhe mandara raptar a mulher, baseado na acusação de que Sancho e Mécia ainda eram parentes. E este mesmo rei podia agora ser acusado de bigamia, pedofilia e incesto, para já não falar de uma certa falta de coerência.
Com este comportamento na vida pessoal, não estranha a conduta política que Afonso III viria a ter. Estamos todos lembrados da jura que fizera em Paris, quando lhe ofereceram o trono de Portugal, aquele a que nunca poderia aspirar por ser um segundo filho, e de como prometeu devolver tudo a todos, particularmente à Igreja. Pois, agora que era rei, que tinha conquistado todas as terras possíveis até ao mar e assegurado a paz por intermédio do casamento com a filha do rei vizinho, Afonso sentiu-se à vontade para esquecer tudo quanto antes prometera. Donde podia vir a ameaça? A retaliação? De modo que, passo a passo, foi seguindo o exemplo do irmão e do pai. Compreendendo que era impossível reinar consentindo contrapoderes debaixo do seu nariz, o Bolonhês foi retirando posses e poderes a clérigos e nobres, de forma mais ou menos violenta, consoante a resistência.
Para as mesmas causas, as mesmas consequências: padres e bispos começam a apontar a lista de queixas e a fazê-las chegar a Roma (muito trabalho dava então Portugal aos secretários do papa); o pior, porém, ainda estava para vir... Em 1253, dona Matilde descobre que o marido, que há oito anos partira para a guerra, era agora rei de Portugal e vivia no paço ao lado de uma rainha que não era ela. A condessa pôs-se a caminho e, chegada a território nacional, foi tirar satisfações junto do marido. Afonso não se atrapalhou e expulsou-a do reino, mas ela não quis ficar atrás: escreveu directamente ao papa, explicando minuciosamente o sucedido. A queixa foi juntar-se às 43 do libelo apresentado pelos bispos do Porto, Coimbra e Braga contra o rei. De Roma chega uma ordem clara: Afonso III devia abandonar de imediato a segunda esposa e respeitar o sagrado matrimónio com Matilde. Será que Afonso pensou, naquele momento, no irmão? Não se sabe. Sabe-se que fez o mesmo que Sancho: ignorou, olimpicamente, as palavras do papa.
Matilde morreria pouco tempo depois, em 1258, de modo que essa parte do problema estava, digamos, resolvida; agora, faltava tratar da outra... A querela com a Igreja ia arrastar-se no tempo, até que as Cortes se reúnem, em Santarém, para deliberar sobre a questão. Formada uma comissão de inquérito, resulta a decisão de absolver o rei dos seus pecados, uma conclusão natural, dado que Afonso tinha conseguido infiltrar na dita comissão abundantes apoiantes. Contudo, mover influências em Portugal era uma coisa; em Roma, outra... Levado ao limite da paciência, Gregório X explodiu e fez de Afonso III o terceiro rei português a ser consecutivamente excomungado. Os anos passavam e a morte aproximava-se. Afonso olhava para trás e temia pelo que tivesse pela frente. Não se podia dizer que houvesse levado uma vida conforme aos ideais cristãos, será que o esperava o fogo eterno do inferno?
Em 1276, Deus parecia pôr-se do lado dele: depois de tanto problema com tanto papa, eis que a cadeira de Pedro era ocupada por um português: Pedro Julião, aliás Pedro Hispano, aliás papa João XXI, o primeiro e único Sumo Pontífice nascido nesta terra que Afonso Henriques começara e ele, Afonso III, completara. Finalmente, haveria paz. Finalmente, haveria entendimento. Finalmente, pensou, em sentido literal e metafórico, um papa que falava a mesma língua do que ele. Mas, 11 meses depois, o tecto do quarto de João XXI, no Palácio de Viterbo, desabou sobre Sua Santidade. Era muito azar.
Afonso tinha 67 anos; a sua esposa 35. Sentia o mundo em cima dele, a velhice, a doença, a corrupção, a impotência, a inexorabilidade disto tudo. E as penas do inferno ali tão perto... E se o inferno não existisse? Se isso fosse tudo para nos meter medo? E se não fosse? E se houvesse mesmo fogo eterno? E se ele fosse para lá? E se lá estivesse o irmão? E Matilde? E os papas todos? O rei começou a pedir perdão. Pediu e repetiu. Voltou a jurar, como tantos anos antes, em Paris. Jurou que devolveria tudo o que tirara ao clero. E devolveu. Mas Roma já não levantaria a excomunhão, nem os bispos de cá. Era tarde, muito tarde. Nos últimos dias, o abade de Alcobaça compadeceu-se dele e, quando Afonso III morreu, a 16 de Fevereiro de 1279, foi lá a enterrar». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT