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Sancho
II e dona Mécia
«(…)
Tinha muito amor para dar, este novo rei de Portugal. Tanto que se permitira
apaixonar por esta Beatriz, uma criança de nove anos que era filha do rei
Afonso X, esse que ainda há pouco combatera ao lado de Sancho II contra os avanços
deste que era agora seu genro. E veja-se, coincidência das coincidências, isto
junta-se o útil ao agradável, este casamento permitia assim a Afonso III de
Portugal uma saudável aliança com Castela, assegurando as pazes entre os reinos
e garantindo que os vizinhos do lado de lá deixavam de lhe disputar a parte do
Guadiana que até ali haviam reclamado. Ah! E mais uma coisa: Afonso III era primo
direito do avô da mulher. Isto é, ele e a pequena Beatriz ainda eram primos.
Tínhamos, portanto, um rei que depusera o irmão e lhe mandara raptar a mulher,
baseado na acusação de que Sancho e Mécia ainda eram parentes. E este mesmo
rei podia agora ser acusado de bigamia, pedofilia e incesto, para já não falar
de uma certa falta de coerência.
Com
este comportamento na vida pessoal, não estranha a conduta política que Afonso
III viria a ter. Estamos todos lembrados da jura que fizera em Paris, quando
lhe ofereceram o trono de Portugal, aquele a que nunca poderia aspirar por ser
um segundo filho, e de como prometeu devolver tudo a todos, particularmente à
Igreja. Pois, agora que era rei, que tinha conquistado todas as terras
possíveis até ao mar e assegurado a paz por intermédio do casamento com a filha
do rei vizinho, Afonso sentiu-se à vontade para esquecer tudo quanto antes
prometera. Donde podia vir a ameaça? A retaliação? De modo que, passo a passo,
foi seguindo o exemplo do irmão e do pai. Compreendendo que era impossível reinar
consentindo contrapoderes debaixo do seu nariz, o Bolonhês foi retirando posses e poderes a clérigos e nobres, de
forma mais ou menos violenta, consoante a resistência.
Para
as mesmas causas, as mesmas consequências: padres e bispos começam a apontar a
lista de queixas e a fazê-las chegar a Roma (muito trabalho dava então Portugal
aos secretários do papa); o pior, porém, ainda estava para vir... Em 1253, dona
Matilde descobre que o marido, que há oito anos partira para a guerra, era agora
rei de Portugal e vivia no paço ao lado de uma rainha que não era ela. A
condessa pôs-se a caminho e, chegada a território nacional, foi tirar satisfações
junto do marido. Afonso não se atrapalhou e expulsou-a do reino, mas ela não
quis ficar atrás: escreveu directamente ao papa, explicando minuciosamente o
sucedido. A queixa foi juntar-se às 43 do libelo apresentado pelos bispos do
Porto, Coimbra e Braga contra o rei. De Roma chega uma ordem clara: Afonso III devia
abandonar de imediato a segunda esposa e respeitar o sagrado matrimónio com
Matilde. Será que Afonso pensou, naquele momento, no irmão? Não se sabe.
Sabe-se que fez o mesmo que Sancho: ignorou, olimpicamente, as palavras do papa.
Matilde
morreria pouco tempo depois, em 1258, de modo que essa parte do problema estava,
digamos, resolvida; agora, faltava tratar da outra... A querela com a Igreja ia
arrastar-se no tempo, até que as Cortes se reúnem, em Santarém, para deliberar
sobre a questão. Formada uma comissão de inquérito, resulta a decisão de
absolver o rei dos seus pecados, uma conclusão natural, dado que Afonso tinha conseguido
infiltrar na dita comissão abundantes apoiantes. Contudo, mover influências em
Portugal era uma coisa; em Roma, outra... Levado ao limite da paciência, Gregório
X explodiu e fez de Afonso III o terceiro rei português a ser consecutivamente
excomungado. Os anos passavam e a morte aproximava-se. Afonso olhava para trás
e temia pelo que tivesse pela frente. Não se podia dizer que houvesse levado
uma vida conforme aos ideais cristãos, será que o esperava o fogo eterno do
inferno?
Em 1276,
Deus parecia pôr-se do lado dele: depois de tanto problema com tanto papa, eis
que a cadeira de Pedro era ocupada por um português: Pedro Julião, aliás Pedro
Hispano, aliás papa João XXI, o primeiro e único Sumo Pontífice nascido nesta
terra que Afonso Henriques começara e ele, Afonso III, completara. Finalmente,
haveria paz. Finalmente, haveria entendimento. Finalmente, pensou, em sentido
literal e metafórico, um papa que falava a mesma língua do que ele. Mas, 11
meses depois, o tecto do quarto de João XXI, no Palácio de Viterbo, desabou
sobre Sua Santidade. Era muito azar.
Afonso
tinha 67 anos; a sua esposa 35. Sentia o mundo em cima dele, a velhice, a
doença, a corrupção, a impotência, a inexorabilidade disto tudo. E as penas do inferno
ali tão perto... E se o inferno não existisse? Se isso fosse tudo para nos
meter medo? E se não fosse? E se houvesse mesmo fogo eterno? E se ele fosse
para lá? E se lá estivesse o irmão? E Matilde? E os papas todos? O rei começou
a pedir perdão. Pediu e repetiu. Voltou a jurar, como tantos anos antes, em
Paris. Jurou que devolveria tudo o que tirara ao clero. E devolveu. Mas Roma já
não levantaria a excomunhão, nem os bispos de cá. Era tarde, muito tarde. Nos
últimos dias, o abade de Alcobaça compadeceu-se dele e, quando Afonso III
morreu, a 16 de Fevereiro de 1279, foi lá a enterrar». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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