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«Não
restava muito tempo. A velha puxou o xaile esfarrapado em torno dos ombros. O Outono
chegara mais cedo às montanhas vermelhas naquele ano e ela podia senti-lo nos
ossos. Suavemente, devagar, flexionou os dedos, desejando que as juntas
enrijecidas relaxassem. As mãos não podiam lhe faltar agora, não com tanta
coisa a fazer. Tinha de acabar de escrever naquela noite. Tamar chegaria em
breve com os jarros e era preciso que tudo estivesse pronto. Ela permitiu-se um
longo suspiro, meio trêmulo. Sinto-me
cansada há muito tempo. Tempo demais. Aquela missão final, ela
sabia, seria a última que teria neste mundo. Os dias passados em recordação
haviam drenado a vida que ainda pulsava no corpo sem viço. Os ossos velhos
estavam sobrecarregados pelo inexprimível pesar e cansaço daqueles que
sobrevivem às pessoas amadas. As provações a que Deus a submetera haviam sido
muitas e rigorosas. Somente Tamar, a única filha mulher e a última criança
viva, permanecia com ela. Tamar era sua bênção, o lampejo de luz naquelas horas
tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que pesadelos recusavam-se a
ser contidas. Sua filha era agora a única outra sobrevivente do Grande Tempo,
embora fosse apenas uma criança, quando todos desempenharam seu papel na
história viva. Ainda assim, era um conforto saber que havia alguém que lembrava
e compreendia. Os outros haviam partido. A maioria morrera, martirizada por
métodos brutais demais para serem suportados. Talvez alguns ainda
sobrevivessem, dispersos pelo vasto mapa do mundo de Deus. Ela nunca saberia. Muitos
anos já haviam passado desde que recebera as últimas notícias dos outros, mas,
de qualquer forma, orava por eles e orava do amanhecer ao anoitecer, naqueles
dias de recordações muito intensas. Gostaria de ter em seu coração e alma a
paz, que eles não sofressem a agonia dos milhares de noites insones. Era
verdade, Tamar se tornara seu único refúgio naqueles anos de crepúsculo. Ela
era jovem demais para recordar os terríveis detalhes do Tempo das Trevas, mas
já tinha idade suficiente para lembrar a beleza e a graça das pessoas que Deus
escolhera para trilharem Seu caminho. Ao dedicar sua vida à memória daqueles
eleitos, o caminho de Tamar fora de puro amor e serviço. A singular dedicação
da jovem a confortar a mãe, naqueles dias finais, fora extraordinária. Deixar minha amada filha é a única coisa
difícil que me resta fazer. Mesmo agora, quando a morte vem me buscar, não
posso aceitá-la de bom grado. E, no entanto… Ela espraiou seu olhar da
entrada da caverna, que tinha sido seu lar por quase quarenta anos. O céu
estava claro. Ela ergueu o rosto enrugado para contemplar a beleza das
estrelas. Nunca deixara de se sentir maravilhada com a criação de Deus. Em
algum lugar, além daquelas estrelas, as almas que mais amara neste mundo
aguardavam-na. Podia senti-las agora, mais próximas do que em qualquer outro
momento anterior. E podia senti-Lo. Seja
feita a Sua vontade, sussurrou ela para o céu nocturno. A velha
virou-se, devagar, determinada, e tornou a entrar na caverna. Respirou fundo,
pegou o pergaminho áspero, os olhos contraídos na claridade mínima e enfumaçada
de um lampião de óleo. Pegou o estilo e recomeçou a escrever, com todo o
cuidado. … Tantos anos transcorridos e
não tornou-se mais fácil agora escrever a respeito de Judas Iscariotes do que
naqueles dias sinistros. Não porque eu dele fizesse qualquer julgamento, mas
justamente porque não fazia. Contarei a história de Judas, e tenciono fazê-lo
com justiça. Era um homem intransigente em seus princípios, e aqueles que nos
seguem disso devem saber: ele não os traiu, nem a nós, por um saco de moedas de
prata. A verdade é que Judas era o mais fiel dos doze. Muitas foram minhas
razões para a dor ao longo dos anos que já se passaram, e, mesmo assim,
considero que há apenas Um e Único cuja perda lamento mais do que a de Judas. Há
muitos que me coagiriam a escrever o pior possível em relação a Judas…, a
condená-lo como um traidor, alguém que não enxergava a verdade. Porém não permito-me
escrever nenhuma dessas coisas, pois mentiras seriam antes mesmo que a pena
tocasse o pergaminho. Muitas serão as mentiras escritas sobre o nosso tempo.
Deus assim me revelou. Nego-me, pois, a escrever qualquer outra. Afinal, qual é
o meu propósito, se não o de relatar toda a verdade dos acontecimentos daquele
tempo? In O Evangelho
de Arques segundo Maria Madalena. O Livro dos Discípulos
Marselha. Setembro de 1997
Marselha
sempre fora, séculos afora, um lugar marcado pela morte. O lendário porto
mantinha a reputação de covil de piratas, contrabandistas e assassinos, desde a
época em que os romanos tomaram a cidade dos gregos, antes de Cristo. Ao final
do século XX, os esforços do governo francês no combate ao crime na cidade
finalmente permitiram que se saboreasse uma bouillabaise sem o medo de
ser assaltado. Não que o crime chocasse seus habitantes. A violência estava
enraizada em sua história e genética. Os calejados pescadores nem piscavam
quando suas redes pegavam alguma coisa mais consistente do que frutos do mar. Roger-Bernard
Gelis não era um nativo de Marselha. Nascera e fora criado nos contrafortes dos
Pirenéus, numa comunidade que sobrevivia, orgulhosa, ao seu anacronismo. O
século XXI não ameaçava sua cultura, muito antiga, que reverenciava os poderes
do amor e da paz acima de todas as coisas terrenas. Mesmo assim, ele era um
homem de meia-idade com alguma experiência do mundo, pois era o líder de seu
povo. E, embora a comunidade convivesse em profunda paz espiritual, tinha sua quota
de inimigos. Roger-Bernard gostava de dizer que a luz maior atrai as trevas
mais profundas. Era quase um gigante, uma presença imponente para os estranhos.
Aqueles que não conheciam a gentileza que prevalecia no espírito de
Roger-Bernard podiam confundi-lo com alguém que devia ser temido. Alguém diria,
mais tarde, que seus atacantes provavelmente não lhe eram desconhecidos. Ele
deveria ter percebido o que poderia acontecer. Deveria ter compreendido que não
o deixariam carregar um objecto de valor tão inestimável impunemente. Afinal,
um milhão de seus ancestrais não haviam morrido por aquele mesmo tesouro? Mas o
tiro fora disparado por trás, estilhaçando seu crânio antes mesmo que ele
soubesse que o inimigo estava próximo. O exame de balística seria inútil para a
polícia, já que os assassinos não encerraram seus feitos com o ataque. Devia
haver vários deles, pois o tamanho e o peso da vítima exigiriam uma certa força
para concretizar o dano. Foi um acto de misericórdia Roger-Bernard ter morrido
antes que o ritual começasse. Foi poupado da exultação de seus assassinos
enquanto se empenhavam na tarefa macabra. Seria possível imaginar um fervor especial
nas acções seguintes, embaladas pelo antigo mantra de ódio enquanto
trabalhavam. Neca eos omnes. Neca eos omnes. Separar uma cabeça
humana do resto do corpo é um trabalho difícil e complicado. Exige força,
determinação e um instrumento muito afiado. Os assassinos de Roger-Bernard Gelis
tinham todas essas coisas e usaram-nas com extrema eficiência». In
Kathleen McGowan, O Segredo do Anel, Editora Rocco, 2006, ISBN 853-252-096-0.
Cortesia
de ERocco/JDACT