sexta-feira, 10 de junho de 2016

O Último Conjurado. Isabel Ricardo. «Naquele momento, surgiu um cavaleiro todo vestido de negro, montado num cavalo. À ordem do dono, o animal estacou, empinando-se nas patas traseiras. Largue o rapaz!»

jdact

«Maldito seja o cardeal que não apontou sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»

Gualdim é o seu nome
destemido mascarado
ao povo mata a fome
ao ministro deixa preocupado.

«(…) Não me bata mais, senhor! Por favor, senhor, perdoe-me! Não me bata mais! Um rapaz de dezoito anos, baixo e esguio, de cabelo escuro encaracolado berrava como um possesso. Estava amarrado a um poste de madeira, que normalmente servia para prender as rédeas dos cavalos. Encontrava-se diante de uma taberna escura, de mau aspecto, com muitos cheiros à mistura, entre eles o do chouriço assado nas brasas e vinho entornado. Não primava pela limpeza. Uma tabuleta ferrugenta permitia que os transeuntes se apercebessem de que estabelecimento se tratava. Quem lhe batia era baixo e atarracado, gordo, de cabelo escorrido e oleoso e olhar traiçoeiro. Taberneiro de muito má fama, avarento e amigo de trair o próximo por duas patacas, era conhecido do povo o seu empenho em servir a coroa espanhola, tratando de informar aos capachos do ministro português o que fulano ou beltrano dissera a respeito dele, para conseguir proveitos a seu favor. Por isso a freguesia era escassa e quem lá ia tratava de permanecer de bico calado, senão, quando menos esperasse, encontrar-se-ia preso no castelo de São Jorge, como já a muitos infelizes acontecera.
Maldito!, gritou o taberneiro, com um olhar cheio de raiva. A expressão do rosto revelava a crueldade e a mesquinhez de carácter. Chicoteava o jovem com satisfação e ar sádico. Voltou a deixar cair a chibata sobre o corpo indefeso. Um grito de dor sucedeu à pancada. Alguma gente já ali se juntara, atraída pelos gritos doloridos de alguém. Tentavam saber qual a razão para haver tal cena, mas ninguém sabia responder e também não se atreviam a interferir no assunto, sabendo dos contactos que o avarento tinha com as autoridades. O que fez o rapaz para o taberneiro lhe bater desta maneira?, perguntou um homem, de farfalhudo bigode. Olhava para outro, que chegara primeiro ao local. O interpelado encolheu os ombros. Uma mulher de lenço preto na cabeça e cesto de limões enfiado no braço observava a cena, contristada. Coitado! Mas o que foi que ele fez? Ninguém sabia responder.
Uma carroça carregada de tonéis passou pela taberna, tendo de abrir caminho entre toda aquela gente curiosa. O condutor mastigava um palito, com ar aparvalhado, talvez de tanto carregar e beber o vinho daqueles recipientes. Arregalou os olhos ao observar a cena, esquecendo-se de trincar o que tinha na boca. Um sorriso maldoso fez ver poucos dentes, quase todos apodrecidos. Barnabé, o que é que o rapazola lhe fez? Roubou-lhe a mulher? E o condutor da carroça soltou uma gargalhadinha divertida, quase engolindo o palito. Só então o taberneiro se apercebeu de que estava a ser alvo das atenções gerais. Virou-se, colérico, colocando as mãos na gorda cintura. O diabo te carregue, Jeremias! Este bandido! É um ladrão! Dei-lhe metade de um pão para comer durante o dia, como faço com os outros criados, pois toda a gente sabe que não sou rico e a vida não está para graças, e não é que dei pela falta da outra metade do pão?! Além de ladrão, é glutão!, declarou, continuando a bater no rapaz, que, a cada chibatada, soltava gritos capazes de comover pedras. Ai! Ai! Eu tinha fome, senhor! Ai, não me bata mais, por Deus! Por favor tende piedade de mim! Só roubei porque tinha fome...
O avarento arregaçou as mangas da camisa, já a suar do esforço. Os calções de pano grosso atados por baixo dos joelhos davam-lhe um ar muito ridículo e os sapatorros com grandes laços não ajudavam muito. Parecia um porco pronto para a matança. O infeliz tentava imitar os elegantes que via, mas em vão. O resultado era sempre uma desgraça… Ah, ladrão! Seu bandido! E Deus não é para aqui chamado! Deixa-O estar descansado onde quer que esteja. Solte o rapaz, Barnabé! Sim, deixe-o! O garoto devia estar com muita fome e quem rouba para comer merece perdão!, gritou um homem magro, brandindo uma rústica bengala. Deixe-o em paz! Já deve ter aprendido a lição. O taberneiro virou-se, de sobrolho carregado. Pôs a mão na cintura, provocador. Solto-o, uma ova! Vai ser castigado por me ter roubado o pão! Metam-se mas é na vossa vida! O povo entreolhou-se. Não podemos fazer nada. O rapaz é criado dele, observou um velho, olhando para uma mulher ainda jovem que tinha os olhos cheios de lágrimas. Maldito seja! Se tivéssemos um rei português, não se permitiriam estes abusos! Diabos levem os Filipes e seus lacaios!
Os outros estremeceram e olharam em volta, receosos. Cala-te, Berta! Sabes bem que há ouvidos por toda a parte! Naquela época havia uma imensidão de espiões ao serviço do rei espanhol. Além das patrulhas nocturnas, impedindo qualquer reunião de tipo suspeito, as pessoas não podiam falar abertamente do que pensavam, com receio das consequências que dali adviriam. A qualquer pretexto eram presas ou então denunciadas ao Tribunal do Santo Ofício (maldito), pelos motivos mais estrambólicos. Eram tempos tenebrosos aqueles, em que o povo tinha de calar a sua dor e angústia pelo peso dos impostos e, principalmente, pela falta de um soberano português. Eram aliciados a acusar secretamente o pai ou o irmão, a esposa ou o marido... Andavam todos de coração nas mãos, apertadinho com tanto medo e terror. Pairava no ar uma conspiração silenciosa entre todos os portugueses contra a coroa espanhola. Parecia um barril de pólvora prestes a explodir à primeira faísca riscada por alguém. Seria uma reacção em cadeia o primeiro que soltasse o grito da revolta, ecoando por todos os cantos do país, em todos os corações, em todas as vozes o brado da independência. O taberneiro continuava a bater no criado, impiedosamente. Naquele momento, surgiu um cavaleiro todo vestido de negro, montado num cavalo. À ordem do dono, o animal estacou, empinando-se nas patas traseiras. Largue o rapaz!» In Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-676-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT