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«Maldito seja o cardeal que não apontou
sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»
Gualdim
é o seu nome
destemido
mascarado
ao
povo mata a fome
ao ministro
deixa preocupado.
«(…)
Não me bata mais, senhor! Por favor, senhor, perdoe-me! Não me bata mais! Um
rapaz de dezoito anos, baixo e esguio, de cabelo escuro encaracolado berrava
como um possesso. Estava amarrado a um poste de madeira, que normalmente servia
para prender as rédeas dos cavalos. Encontrava-se diante de uma taberna escura,
de mau aspecto, com muitos cheiros à mistura, entre eles o do chouriço assado
nas brasas e vinho entornado. Não primava pela limpeza. Uma tabuleta ferrugenta
permitia que os transeuntes se apercebessem de que estabelecimento se tratava. Quem
lhe batia era baixo e atarracado, gordo, de cabelo escorrido e oleoso e olhar traiçoeiro.
Taberneiro de muito má fama, avarento e amigo de trair o próximo por duas
patacas, era conhecido do povo o seu empenho em servir a coroa espanhola,
tratando de informar aos capachos do ministro português o que fulano ou
beltrano dissera a respeito dele, para conseguir proveitos a seu favor. Por
isso a freguesia era escassa e quem lá ia tratava de permanecer de bico calado,
senão, quando menos esperasse, encontrar-se-ia preso no castelo de São Jorge,
como já a muitos infelizes acontecera.
Maldito!,
gritou o taberneiro, com um olhar cheio de raiva. A expressão do rosto revelava
a crueldade e a mesquinhez de carácter. Chicoteava o jovem com satisfação e ar
sádico. Voltou a deixar cair a chibata sobre o corpo indefeso. Um grito de dor
sucedeu à pancada. Alguma gente já ali se juntara, atraída pelos gritos
doloridos de alguém. Tentavam saber qual a razão para haver tal cena, mas
ninguém sabia responder e também não se atreviam a interferir no assunto,
sabendo dos contactos que o avarento tinha com as autoridades. O que fez o
rapaz para o taberneiro lhe bater desta maneira?, perguntou um homem, de
farfalhudo bigode. Olhava para outro, que chegara primeiro ao local. O
interpelado encolheu os ombros. Uma mulher de lenço preto na cabeça e cesto de
limões enfiado no braço observava a cena, contristada. Coitado! Mas o que foi
que ele fez? Ninguém sabia responder.
Uma
carroça carregada de tonéis passou pela taberna, tendo de abrir caminho entre
toda aquela gente curiosa. O condutor mastigava um palito, com ar aparvalhado,
talvez de tanto carregar e beber o vinho daqueles recipientes. Arregalou os
olhos ao observar a cena, esquecendo-se de trincar o que tinha na boca. Um
sorriso maldoso fez ver poucos dentes, quase todos apodrecidos. Barnabé, o que
é que o rapazola lhe fez? Roubou-lhe a mulher? E o condutor da carroça soltou
uma gargalhadinha divertida, quase engolindo o palito. Só então o taberneiro se
apercebeu de que estava a ser alvo das atenções gerais. Virou-se, colérico,
colocando as mãos na gorda cintura. O diabo te carregue, Jeremias! Este
bandido! É um ladrão! Dei-lhe metade de um pão para comer durante o dia, como
faço com os outros criados, pois toda a gente sabe que não sou rico e a vida
não está para graças, e não é que dei pela falta da outra metade do pão?! Além
de ladrão, é glutão!, declarou, continuando a bater no rapaz, que, a cada
chibatada, soltava gritos capazes de comover pedras. Ai! Ai! Eu tinha fome,
senhor! Ai, não me bata mais, por Deus! Por favor tende piedade de mim! Só
roubei porque tinha fome...
O
avarento arregaçou as mangas da camisa, já a suar do esforço. Os calções de
pano grosso atados por baixo dos joelhos davam-lhe um ar muito ridículo e os
sapatorros com grandes laços não ajudavam muito. Parecia um porco pronto para a
matança. O infeliz tentava imitar os elegantes que via, mas em vão. O resultado
era sempre uma desgraça… Ah, ladrão! Seu bandido! E Deus não é para aqui
chamado! Deixa-O estar descansado onde quer que esteja. Solte o rapaz, Barnabé!
Sim, deixe-o! O garoto devia estar com muita fome e quem rouba para comer
merece perdão!, gritou um homem magro, brandindo uma rústica bengala. Deixe-o
em paz! Já deve ter aprendido a lição. O taberneiro virou-se, de sobrolho
carregado. Pôs a mão na cintura, provocador. Solto-o, uma ova! Vai ser castigado
por me ter roubado o pão! Metam-se mas é na vossa vida! O povo entreolhou-se.
Não podemos fazer nada. O rapaz é criado dele, observou um velho, olhando para
uma mulher ainda jovem que tinha os olhos cheios de lágrimas. Maldito seja! Se
tivéssemos um rei português, não se permitiriam estes abusos! Diabos levem os
Filipes e seus lacaios!
Os
outros estremeceram e olharam em volta, receosos. Cala-te, Berta! Sabes bem que
há ouvidos por toda a parte! Naquela época havia uma imensidão de espiões ao
serviço do rei espanhol. Além das patrulhas nocturnas, impedindo qualquer
reunião de tipo suspeito, as pessoas não podiam falar abertamente do que
pensavam, com receio das consequências que dali adviriam. A qualquer pretexto
eram presas ou então denunciadas ao Tribunal do Santo Ofício (maldito), pelos motivos mais
estrambólicos. Eram tempos tenebrosos aqueles, em que o povo tinha de calar a sua
dor e angústia pelo peso dos impostos e, principalmente, pela falta de um
soberano português. Eram aliciados a acusar secretamente o pai ou o irmão, a
esposa ou o marido... Andavam todos de coração nas mãos, apertadinho com tanto
medo e terror. Pairava no ar uma conspiração silenciosa entre todos os
portugueses contra a coroa espanhola. Parecia um barril de pólvora prestes a
explodir à primeira faísca riscada por alguém. Seria uma reacção em cadeia o
primeiro que soltasse o grito da revolta, ecoando por todos os cantos do país, em
todos os corações, em todas as vozes o brado da independência. O taberneiro
continuava a bater no criado, impiedosamente. Naquele momento, surgiu um
cavaleiro todo vestido de negro, montado num cavalo. À ordem do dono, o animal
estacou, empinando-se nas patas traseiras. Largue o rapaz!» In
Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-676-5.
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