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João Pedro calculou que ela viera das Maurícias carregada de presentes para os
filhos e que haveria um Natal antecipado lá em casa. Clara não se poupava para satisfazer
todos os caprichos dos gémeos, mimava-os demais, no entender de João Pedro. Já
tentara abordar o assunto, na esperança de a levar a ser mais razoável nesse
particular mas a reacção fora desanimadora e até um pouco agressiva. Clara
encrespara-se, fizera-lhe uma longa prelecção sobre os seus predicados de mãe,
acusara-o de se sentir despeitado por ela gastar dinheiro com os gémeos porque o
poder de compra dela aumentara consideravelmente com a sua nova e muito feliz relação.
Em suma, disse: João Pedro, vai-te fo… com os teus falsos moralismos só porque eu
posso oferecer uma boa vida aos nossos filhos, coisa que antes não acontecia com
a mesma facilidade, porque tínhamos o dinheiro todo contado, graças a ti. E era
bem verdade, antes, tinham o dinheiro contado e, nos derradeiros tempos, praticamente
já só viviam do ordenado dela porque os quadros de João Pedro deixaram de se vender
à medida que a crise avançava e esmagava a economia e as pessoas. Porém, no momento
em que ela lhe atirou à cara o fracasso dele e sugeriu que tinha mais poder de compra
do que ele, já não era exactamente assim, pois a sorte de João Pedro mudara. Bem,
talvez não tivesse mudado pelas melhores razões, daí mais uma justificação para
o ressentimento de Clara, mas mudara e não fora pouco.
Clara
costumava ser uma mulher comedida que levava a vida sem se queixar. Tratava das
contas da casa com um rigor espartano e o dinheiro, ou a falta dele, jamais constituíra
um problema. Viviam com relativamente pouco, mas sem lhes faltar o essencial, e
isso nunca fora uma questão nem um entrave à felicidade deles, porque João
Pedro não era homem de grandes gastos e Clara não ambicionava vestidos de marca,
jóias caríssimas ou viagens a lugares exóticos. Clara, porém, desejava muito mais
do que a marca da roupa ou o brilho do diamante, ou não se teria casado com ele
a imaginar que, um dia, os seus quadros
lhe trariam o reconhecimento público, as honrarias das condecorações
presidenciais, o prestígio dos leilões da Christie's com preços de vendas a
baterem recordes. Justamente, o falhanço de João Pedro era o fracasso de Clara que,
vendo os seus sonhos defraudados, se livrara dele insensivelmente, deitando-lhe
todas as culpas, e, à falta das honrarias, contentara-se com um segundo
casamento endinheirado e tornara-se uma mulher sofisticada. Estava rejuvenescida:
vestia mais caro, fazia luas-de-mel em resorts de luxo nas ilhas Maurícias,
dizia ao ex-marido que se fosse fo…! O dinheiro tinha destas coisas.
João
Pedro sentou-se a uma mesa no café com um sorriso nos lábios, rodeado de jornais
e revistas, pois entusiasmara-se e acabara por comprar um festim de literatura com
que tencionava banquetear-se na próxima hora. Mais tarde, satisfeito com a leitura,
enfiou tudo num saco, pagou a conta e, como não tinha grande vontade de voltar para
casa, pôs-se a deambular pelos corredores do centro comercial. A certa altura, deteve-se
perante a montra de uma loja de animais a admirar um cãozinho que atraiu à sua atenção.
O bicho dormitava no interior de um cubículo de acrílico transparente. Era um boxer,
reconheceu logo a raça, ainda que estivesse meio camuflado por um montinho de palha
que lhe servia de cama e no qual se afundava. Quando era miúdo, João Pedro odiava
aqueles cães. Não porque tivesse tido algum episódio infeliz com um deles ou que
se assustasse particularmente com os boxers, mas porque, bem, como dizer isto?,
digamos que a sua fisionomia fazia lembrar a dos boxers um pouco mais do que
ele desejaria. João Pedro tinha prognatismo e, tal como nos boxers, a mandíbula
inferior proeminente era a sua característica mais evidente. Na realidade, essa
característica condicionara decisivamente a sua forma de se relacionar com o
mundo, definira o seu carácter até aos dias de hoje». In Tiago Rebelo, Um Homem
Escandaloso, Edições ASA, 2014, ISBN 978-989-232-876-8.
Cortesia
de EASA/JDACT