domingo, 26 de junho de 2016

Uma Questão de Fé. A. Borges. «… a Capela de São João Baptista, construída em Roma e, depois, desmantelada e transportada até Lisboa. A jóia de ouro que ainda hoje brilha no interior da Igreja de São Roque, em Lisboa»

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«(…) O rei era grande e gostava de fazer as coisas em grande. Não admira, pois, o tamanho do seu coração... Ao que parece, conheceu a primeira amante logo aos 15 anos. Chamava-se Filipa Noronha e o então príncipe quis casar com ela, mas o pai tinha outros planos. Por imposição de Pedro, João casaria com Maria Ana de Áustria, pouco dotada de beleza, a fazer fé nas crónicas, mas dum carácter inabalável, que tudo haveria de perdoar ao marido ao longo da vida, em nome do sentido de Estado. Foi Fernando Teles Silva, conde de Vilar Maior, o embaixador extraordinário encarregado por Pedro de ir a Viena pedir a mão de Maria Ana, filha do imperador Leopoldo e irmã dos aliados de guerra Carlos e José. Teles Silva chegou à Áustria a 2l de Fevereiro de 1708, reunindo com os imperadores em audiências particulares até chegar a um acordo formal. Depois, vinha o espectáculo. A 7 de Junho, entra na capital, com toda a solenidade e pompa dos cerca de 40 coches, alguns mandados vir, de propósito, da Holanda, cada um puxado por seis cavalos, com destino à cerimónia de apresentação.
A 21 de Junho, no Paço da Favorita, dona Maria Ana era oficialmente pedida em casamento em nome do rei de Portugal. Na circunstância, o embaixador terá entregue à futura rainha um retrato de João V, mas, como se a beleza do rei pudesse não bastar para convencer Maria Ana (e como se a vontade da noiva importasse alguma coisa perante a decisão consumada das famílias), a moldura que enquadrava o óleo estava cravejada de diamantes, um pequeno sinal da sua estima, dir-se-ia... A 9 de Julho, o cardeal da Saxónia celebrava a cerimónia nupcial, ainda sem a presença do noivo, representado pelos seus embaixadores. Por fim, já a 26 de Outubro e depois de um longo cortejo através da Europa, pontuado, a cada paragem, pela realização de uma nova festa comemorativa, João e Maria Ana conheciam-se finalmente em pessoa. A imponente recepção aconteceu no Paço da Ribeira, prolongando-se por três dias e três noites. A 22 de Dezembro, na Sé de Lisboa, a corte inteira compareceu ao Te Deum, derradeira comemoração do casamento real, meio ano depois de a noiva ter dado o sim em Viena. Há casamentos, da cerimónia à separação, que não duram tanto...
Diz-se que o primeiro acto oficial da novíssima rainha de Portugal terá sido mandar Filipa Noronha para a clausura. Essa Filipa que acabara de dar à luz uma menina, sabe-se lá de que pai... O segundo, ser fiel a João V. Para a descrição do que foi a vida conjugal deste casal real, basta regressar ao Memorial do Convento. José Saramago começa o romance precisamente por aí, relatando uma noite como muitas outras, quando João V se deslocou solenemente ao quarto da mulher para lhe tentar fazer um filho, rodeado de criados e rituais e redundando em fracasso. E explica como, durante dois anos, se repetiu diplomaticamente o cerimonial as vezes que foram precisas, até que o rei concretizasse, por fim, o grande objectivo nacional: a produção dum herdeiro. E como, cumprindo a promessa que havia feito perante tantas dificuldades, mandou levantar um colossal convento em Mafra, com um palácio que competisse com Versalhes. E que essa construção se arrastaria pelos anos, consumindo loucamente os recursos do império e sacrificando urna multidão de milhares de operários anónimos. E que, depois, el-rei mandou vir músicos de toda a Europa para compor, de propósito, para os grandes carrilhões que mandara fabricar e instalar ali. E que tudo isto custou 120 milhões de cruzados e ficou como paradigma da megalomania de um rei que os cronistas oficiais preferiram cognominar de o Magnânimo, patrocinador de outras obras faraónicas, como o Aqueduto das Águas Livres, a Torre dos Clérigos, o Solar de Mateus, o Palácio do Freixo, e muitas outras de vocação religiosa, como o escadório do Santuário do Bom Jesus, em Braga, e a Capela de São João Baptista, encomendada aos melhores arquitectos da época, construída em Roma e, depois, desmantelada e transportada até Lisboa, onde seria remontada peça a peça até se transformar na jóia de ouro que ainda hoje brilha no interior da Igreja de São Roque, em Lisboa». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.



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