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O rei era grande e gostava de fazer as coisas em grande. Não admira, pois, o
tamanho do seu coração... Ao que parece, conheceu a primeira amante logo aos 15
anos. Chamava-se Filipa Noronha e o então príncipe quis casar com ela, mas o pai
tinha outros planos. Por imposição de Pedro, João casaria com Maria Ana de
Áustria, pouco dotada de beleza, a fazer fé nas crónicas, mas dum carácter inabalável,
que tudo haveria de perdoar ao marido ao longo da vida, em nome do sentido de
Estado. Foi Fernando Teles Silva, conde de Vilar Maior, o embaixador
extraordinário encarregado por Pedro de ir a Viena pedir a mão de Maria Ana,
filha do imperador Leopoldo e irmã dos aliados de guerra Carlos e José. Teles Silva
chegou à Áustria a 2l de Fevereiro de 1708, reunindo com os imperadores em
audiências particulares até chegar a um acordo formal. Depois, vinha o espectáculo.
A 7 de Junho, entra na capital, com toda a solenidade e pompa dos cerca de 40
coches, alguns mandados vir, de propósito, da Holanda, cada um puxado por seis
cavalos, com destino à cerimónia de apresentação.
A 21
de Junho, no Paço da Favorita, dona Maria Ana era oficialmente pedida em
casamento em nome do rei de Portugal. Na circunstância, o embaixador terá
entregue à futura rainha um retrato de João V, mas, como se a beleza do rei
pudesse não bastar para convencer Maria Ana (e como se a vontade da noiva
importasse alguma coisa perante a decisão consumada das famílias), a moldura
que enquadrava o óleo estava cravejada de diamantes, um pequeno sinal da sua
estima, dir-se-ia... A 9 de Julho, o cardeal da Saxónia celebrava a cerimónia
nupcial, ainda sem a presença do noivo, representado pelos seus embaixadores. Por
fim, já a 26 de Outubro e depois de um longo cortejo através da Europa,
pontuado, a cada paragem, pela realização de uma nova festa comemorativa, João
e Maria Ana conheciam-se finalmente em pessoa. A imponente recepção aconteceu no
Paço da Ribeira, prolongando-se por três dias e três noites. A 22 de Dezembro,
na Sé de Lisboa, a corte inteira compareceu ao Te Deum, derradeira comemoração do casamento real, meio ano depois
de a noiva ter dado o sim em Viena. Há casamentos, da cerimónia à
separação, que não duram tanto...
Diz-se
que o primeiro acto oficial da novíssima rainha de Portugal terá sido mandar Filipa
Noronha para a clausura. Essa Filipa que acabara de dar à luz uma menina,
sabe-se lá de que pai... O segundo, ser fiel a João V. Para a descrição do que
foi a vida conjugal deste casal real, basta regressar ao Memorial do Convento.
José Saramago começa o romance precisamente por aí, relatando uma noite como
muitas outras, quando João V se deslocou solenemente ao quarto da mulher para lhe
tentar fazer um filho, rodeado de criados e rituais e redundando em fracasso. E
explica como, durante dois anos, se repetiu diplomaticamente o cerimonial as
vezes que foram precisas, até que o rei concretizasse, por fim, o grande objectivo
nacional: a produção dum herdeiro. E como, cumprindo a promessa que havia feito
perante tantas dificuldades, mandou levantar um colossal convento em Mafra, com
um palácio que competisse com Versalhes. E que essa construção se arrastaria
pelos anos, consumindo loucamente os recursos do império e sacrificando urna multidão
de milhares de operários anónimos. E que, depois, el-rei mandou vir músicos de toda
a Europa para compor, de propósito, para os grandes carrilhões que mandara fabricar
e instalar ali. E que tudo isto custou 120 milhões de cruzados e ficou como
paradigma da megalomania de um rei que os cronistas oficiais preferiram cognominar
de o Magnânimo, patrocinador de outras
obras faraónicas, como o Aqueduto das Águas Livres, a Torre dos Clérigos, o Solar
de Mateus, o Palácio do Freixo, e muitas outras de vocação religiosa, como o escadório
do Santuário do Bom Jesus, em Braga, e a Capela de São João Baptista, encomendada
aos melhores arquitectos da época, construída em Roma e, depois, desmantelada e
transportada até Lisboa, onde seria remontada peça a peça até se transformar na
jóia de ouro que ainda hoje brilha no interior da Igreja de São Roque, em Lisboa».
In
Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas,
2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
Cortesia
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