sábado, 16 de julho de 2016

Madre Paula. Patrícia Muller. «Lembro-me de te ver à porta da Capela Real, disse-me na noite em que pela primeira vez me entreguei a ele. Acreditei. Se fui a sua bruxa, então ele foi o meu satanás. Voltei para casa perturbada»

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«(…) O pai nunca descobriu as nossas incursões às casas de má fama na Mouraria. Éramos boas filhas. Ele passava os dias a trabalhar o ouro, nós não incomodávamos e tentávamos trazer-lhe alegria. Desde que a mãe tinha morrido que o pai havia perdido a capacidade de, por si, ver o lado bonito da vida. Deixou de conseguir trabalhar o ouro como dantes. Apesar das más-línguas das vizinhas, eu sabia que sempre tinha sido um ourives de excepção. Ainda guardo uma pulseira que me deu quando entrei para Odivelas. Uma tira larga com um jardim de delicadas flores trabalhadas, em filigrana, com a imagem de S. Bernardo, o santo padroeiro do rei. Mais tarde, o meu santo padroeiro também. É dele o pensamento que me acompanha há muitos anos: a última tentação do demónio, que assedia os perfeitos, aqueles que superam tudo: volúpias, favores, honras. S. Bernardo falou com Deus. Mas nunca percebeu o que é o amor na terra. A esse não se resiste.
A Luz foi para Odivelas pouco depois destas minhas memórias dos dias da dança. Foi um tempo mais triste, como se a trindade se houvesse perdido. O que seria do Pai, sem o Filho ou o Espírito Santo? Voltámos as duas a reunir-nos mais tarde no convento, onde permanecemos até hoje. Sem sombra de dúvida, permaneceremos até à hora da nossa morte. Odivelas é a minha casa. A minha cela é o meu quarto. As monjas, minhas irmãs. E também o nosso cadafalso.
No dia em que vi el-reí pela primeira vez tinha dezasseis anos, a vida monástica estava ainda distante. O que me interessava era percorrer as ruas da formidável metrópole. Bela e suja, cheirava a cães vadios e a especiarias. Dejectos entupiam o pavimento, marinheiros, maritornes e escravas, cavaleiros e camareiros e mercadores suados entupiam o ar. Alfazema e alho no hálito, sobranceira sobre o Tejo, seu eterno espelho amante, era o cenário do meu prazer máximo: um chocolate doce, tocado por canela e baunilha comprado a um mercador na rua. A multidão dirigia-se à Capela Real e ouvi-lhe os cochichos. El-rei conseguiu um favor do papa. El-rei é mais poderoso que todos os outros. El-rei é soberano no mundo inteiro.
A capela tinha sido elevada a igreja patriarcal, uma grande honra, por ordem directa de Sua Santidade, Clemente XII, que tinha o reinado de Portugal em grande estima. Mais tarde, muito mais tarde, entre outra canela e outra baunilha, João confirmou que o papa tinha o reinado de Portugal em grande estima, de facto, e em maior estima ainda o ouro que vinha de terras de Vera Cruz e que enchia os cofres do Vaticano a troco de alguns favores. Era crente, o rei, não sendo tolo. A missa celebrava a façanha, A chegar à porta, o coche que o mesmo papa enviara, usado no baptismo do príncipe primogénito e herdeiro, Pedro. Era dourado mas não impediu a morre do infante pouco tempo depois. O ouro não compra a vida, diz a Luz. Recordo a figura amadeirada de um menino na parte de trás, com um coração em chamas na mão. Representava o filho do rei. Era príncipe. O meu filho é também filho do rei, mas nunca foi príncipe. Assim como eu nunca fui rainha. O ouro não compra a vida, repeti vezes sem conta.
O rei saiu do coche, altivo. Vestia ume casaca azul-clara, bordada a prata, debaixo de uma capa negra. O colete era grã e os calções de seda faziam parelha com as meias. As fivelas dos sapatos de ouro maciço, os tacões altos. A cabeleira impecavelmente empoada, os caracóis perfeitos, era o homem mais bonito que eu alguma vez vira. Furei por entre a multidão e consegui chegar perto de Sua Majestade, mesmo à frente de todos, olhando-o, curiosa e excitada por rer a oportunidade de estar perto do homem mais poderoso do mundo. João acenava à multidão, sorridente e polido. Estava habituado a este espetáculo, era a vida que Deus tinha designado para ele. Considerei-o bonito, hipnotizante, que soberania! Tudo me inebriava: o coche, os guardas, as roupas, a pompa, a histeria da população. O poder acima de tudo. Dei mais um passo em frente, movida por nem sei que força ou que audácia, um dos guardas reais notou e avançou, ameaçador, pronto a fazer-me recuar. Foi então que João, certamente atraído pela movimentação, olhou na minha direcção. Gelei. Não consegui mexer nem mais um músculo. Os olhos escuros olharam-me como se me virassem do avesso e ele sorriu, fixo em mim. Fez sinal ao guarda e este afastou-se, eu permaneci no mesmo sítio, especada, diante de Sua Majestade. Não houve palavras, só mistério e atracção. O momento esfumou-se com o olhar do rei a afastar-se, largando-me, passando para outras paisagens. Ali fiquei, no meio da multidão a quem João acenava.
Lembro-me de te ver à porta da Capela Real, disse-me na noite em que pela primeira vez me entreguei a ele. Acreditei. Se fui a sua bruxa, então ele foi o meu satanás. Voltei para casa perturbada. O pai estranhou e perguntou se não estaria doente. A Leocádia fez-me chá e obrigou-me a comer pão. Suspeitaram da minha fraqueza e mandaram-me dormir. Nessa noite, já sonhava com o rei. Vi-nos juntos, numa cama que eu não conhecia, num quarto que eu não conhecia, abraçados como dois bichos, os meus braços à volta do pescoço dele, apertada, a apertar, a querermos fundir-nos um no outro. Não sou vidente mas acredito no destino. Podias ter contrariado o destino. Não acredito que Deus quisesse que tu passasses por aquilo que passaste, disse a Luz.. A Luz nunca gostou do que nos aconteceu. Mas aceitou as regalias que o meu corpo e a minha alma obtiveram. Era fácil julgar, e até a minha própria irmã cedeu à prontidão. Era diabólico de todas as formas, aquele amor, especialmente nas opiniões dos outros.
Seis meses depois, o pai mandou que eu e a Leocádia nos reuníssemos com ele na oficina. Tinha os olhos marejados, o martelo como extensão da mão direita, sempre a mais forte, o avental com pingos escuros. Lágrimas ou apenas restos do trabalho? Não consegui parar de pensar nesse assunto, inventei uma doença, uma desgraça com a Luz, com outros membros da família, uma tempestade, a lembrança da mãe a bater mais forte, a... Estás a ouvir, Paula? Estava a ouvir. O pai vai fechar a oficina. Não tenho clientes, não vendo as minhas jóias. Fico com a casa e a Leocádia ajuda-me, até ver o que conseguimos. Tu vais para o convento receber educação e acompanhar a tua irmã. Uma doença, uma desgraça com a Luz, com outros membros da família, uma tempestade e a lembrança da mãe a bater mais forte era o pior que podia acontecer. A ida para Odivelas era o fim do mundo. Não tinha nascido com vocação para freira, a minha relação com Deus não era diferente da minha relação com os homens: não existia». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT