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«(…) O pai nunca
descobriu as nossas incursões às casas de má fama na Mouraria. Éramos boas filhas.
Ele passava os dias a trabalhar o ouro, nós não incomodávamos e tentávamos
trazer-lhe alegria. Desde que a mãe tinha morrido que o pai havia perdido a
capacidade de, por si, ver o lado bonito da vida. Deixou de conseguir trabalhar
o ouro como dantes. Apesar das más-línguas das vizinhas, eu sabia que sempre
tinha sido um ourives de excepção. Ainda guardo uma pulseira que me deu quando
entrei para Odivelas. Uma tira larga com um jardim de delicadas flores
trabalhadas, em filigrana, com a imagem de S. Bernardo, o santo padroeiro do
rei. Mais tarde, o meu santo padroeiro também. É dele o pensamento que me
acompanha há muitos anos: a última tentação do demónio, que assedia os
perfeitos, aqueles que superam tudo: volúpias, favores, honras. S. Bernardo
falou com Deus. Mas nunca percebeu o que é o amor na terra. A esse não se
resiste.
A Luz foi para
Odivelas pouco depois destas minhas memórias dos dias da dança. Foi um tempo
mais triste, como se a trindade se houvesse perdido. O que seria do Pai, sem o
Filho ou o Espírito Santo? Voltámos as duas a reunir-nos mais tarde no
convento, onde permanecemos até hoje. Sem sombra de dúvida, permaneceremos até
à hora da nossa morte. Odivelas é a minha casa. A minha cela é o meu quarto. As
monjas, minhas irmãs. E também o nosso cadafalso.
No dia em que vi
el-reí pela primeira vez tinha dezasseis anos, a vida monástica estava ainda
distante. O que me interessava era percorrer as ruas da formidável metrópole.
Bela e suja, cheirava a cães vadios e a especiarias. Dejectos entupiam o
pavimento, marinheiros, maritornes e escravas, cavaleiros e camareiros e
mercadores suados entupiam o ar. Alfazema e alho no hálito, sobranceira sobre o
Tejo, seu eterno espelho amante, era o cenário do meu prazer máximo: um
chocolate doce, tocado por canela e baunilha comprado a um mercador na rua. A
multidão dirigia-se à Capela Real e ouvi-lhe os cochichos. El-rei conseguiu um
favor do papa. El-rei é mais poderoso que todos os outros. El-rei é soberano no
mundo inteiro.
A capela tinha sido
elevada a igreja patriarcal, uma grande honra, por ordem directa de Sua Santidade,
Clemente XII, que tinha o reinado de Portugal em grande estima. Mais tarde,
muito mais tarde, entre outra canela e outra baunilha, João confirmou que o
papa tinha o reinado de Portugal em grande estima, de facto, e em maior estima
ainda o ouro que vinha de terras de Vera Cruz e que enchia os cofres do Vaticano
a troco de alguns favores. Era crente, o rei, não sendo tolo. A missa celebrava
a façanha, A chegar à porta, o coche que o mesmo papa enviara, usado no baptismo
do príncipe primogénito e herdeiro, Pedro. Era dourado mas não impediu a morre
do infante pouco tempo depois. O ouro não compra a vida, diz a Luz. Recordo a figura
amadeirada de um menino na parte de trás, com um coração em chamas na mão.
Representava o filho do rei. Era príncipe. O meu filho é também filho do rei,
mas nunca foi príncipe. Assim como eu nunca fui rainha. O ouro não compra a vida,
repeti vezes sem conta.
O rei saiu do coche,
altivo. Vestia ume casaca azul-clara, bordada a prata, debaixo de uma capa
negra. O colete era grã e os calções de seda faziam parelha com as meias. As
fivelas dos sapatos de ouro maciço, os tacões altos. A cabeleira impecavelmente
empoada, os caracóis perfeitos, era o homem mais bonito que eu alguma vez vira.
Furei por entre a multidão e consegui chegar perto de Sua Majestade, mesmo à
frente de todos, olhando-o, curiosa e excitada por rer a oportunidade de estar perto
do homem mais poderoso do mundo. João acenava à multidão, sorridente e polido.
Estava habituado a este espetáculo, era a vida que Deus tinha designado para
ele. Considerei-o bonito, hipnotizante, que soberania! Tudo me inebriava: o
coche, os guardas, as roupas, a pompa, a histeria da população. O poder acima
de tudo. Dei mais um passo em frente, movida por nem sei que força ou que
audácia, um dos guardas reais notou e avançou, ameaçador, pronto a fazer-me
recuar. Foi então que João, certamente atraído pela movimentação, olhou na
minha direcção. Gelei. Não consegui mexer nem mais um músculo. Os olhos escuros
olharam-me como se me virassem do avesso e ele sorriu, fixo em mim. Fez sinal
ao guarda e este afastou-se, eu permaneci no mesmo sítio, especada, diante de
Sua Majestade. Não houve palavras, só mistério e atracção. O momento esfumou-se
com o olhar do rei a afastar-se, largando-me, passando para outras paisagens.
Ali fiquei, no meio da multidão a quem João acenava.
Lembro-me de te ver à
porta da Capela Real, disse-me na noite em que pela primeira vez me entreguei a
ele. Acreditei. Se fui a sua bruxa, então ele foi o meu satanás. Voltei para
casa perturbada. O pai estranhou e perguntou se não estaria doente. A Leocádia
fez-me chá e obrigou-me a comer pão. Suspeitaram da minha fraqueza e mandaram-me
dormir. Nessa noite, já sonhava com o rei. Vi-nos juntos, numa cama que eu não
conhecia, num quarto que eu não conhecia, abraçados como dois bichos, os meus
braços à volta do pescoço dele, apertada, a apertar, a querermos fundir-nos um
no outro. Não sou vidente mas acredito no destino. Podias ter contrariado o
destino. Não acredito que Deus quisesse que tu passasses por aquilo que passaste,
disse a Luz.. A Luz nunca gostou do que nos aconteceu. Mas aceitou as regalias
que o meu corpo e a minha alma obtiveram. Era fácil julgar, e até a minha
própria irmã cedeu à prontidão. Era diabólico de todas as formas, aquele amor,
especialmente nas opiniões dos outros.
Seis meses depois, o
pai mandou que eu e a Leocádia nos reuníssemos com ele na oficina. Tinha os
olhos marejados, o martelo como extensão da mão direita, sempre a mais forte, o
avental com pingos escuros. Lágrimas ou apenas restos do trabalho? Não consegui
parar de pensar nesse assunto, inventei uma doença, uma desgraça com a Luz, com
outros membros da família, uma tempestade, a lembrança da mãe a bater mais
forte, a... Estás a ouvir, Paula? Estava a ouvir. O pai vai fechar a oficina.
Não tenho clientes, não vendo as minhas jóias. Fico com a casa e a Leocádia ajuda-me,
até ver o que conseguimos. Tu vais para o convento receber educação e
acompanhar a tua irmã. Uma doença, uma desgraça com a Luz, com outros membros
da família, uma tempestade e a lembrança da mãe a bater mais forte era o pior
que podia acontecer. A ida para Odivelas era o fim do mundo. Não tinha nascido
com vocação para freira, a minha relação com Deus não era diferente da minha relação
com os homens: não existia». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA
II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
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