sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Apogeu da Cidade Medieval. Jacques le Goff. «Passa-se da cidade selvagem e conquistadora à “boa” cidade. Jerusalém, a cidade da esperança, não triunfou sobre Babilónia, a cidade da desordem»

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1150-1330
«De meados do século XII a cerca de 1340, o desenvolvimento da cristandade latina atinge o seu apogeu. Nesse apogeu a França ocupa o primeiro lugar e o grande movimento de urbanização está no auge. As cidades são uma das principais manifestações e um dos motores essenciais dessa culminação medieval. A actividade económica, cujo centro são as cidades, chega ao seu mais alto nível. Sob a égide de uma Igreja que se adapta à evolução e triunfa sobre a ameaça herética, particularmente viva em certos meios urbanos, uma nova sociedade, marcada pelo cunho urbano, manifesta-se num relativo equilíbrio entre nobreza, que participa do movimento urbano mais do que se tem afirmado, burguesia que dá o tono, se não o tom, à sociedade, e classes trabalhadoras, das quais uma parte, urbana, fornece a massa de mão-de-obra às cidades, e a outra, rural, alimenta a cidade e é penetrada por seu dinamismo. A cultura, a arte e a religião têm uma fisionomia eminentemente urbana. Mas a cidade tende também a se instalar, se não a estacionar. Ela cristaliza seu corpo físico nos lugares em que se fixou, quase sempre no interior das muralhas onde se encerra, institucionaliza seu impulso político numa comunidade vitoriosa mas estabilizada, sua actividade produtora se organiza segundo uma tendência corporativa, sua efervescência escolar e intelectual se acomoda nas universidades. Ela estabelece sua imagem e constrói seu imaginário e sua ideologia. Mas acima dela o poder monárquico insere-a numa construção que a ultrapassa e a submete. Passa-se da cidade selvagem e conquistadora à boa cidade. Jerusalém, a cidade da esperança, não triunfou sobre Babilónia, a cidade da desordem. Em breve, a partir de 1260, com velocidade maior ou menor, conforme as regiões, desequilíbrios estruturais da economia e da sociedade, marcados por uma longa crise conjuntural que se aprofunda e se manifesta a princípio nas cidades, conduzem a uma crise de múltiplos aspectos. A activação dos distúrbios sociais evoca uma realidade de desigualdades e lutas que uma harmonia de fachada mascarara durante algum tempo, as crises monetárias mostram a fragilidade de uma economia baseada no dinheiro com a qual as cidades quase se haviam identificado, a multiplicação das reclusões e das exclusões revela o aumento do número de marginais de todos os tipos, a teologia, a literatura e a arte deixam transparecer a inquietude que se exprime principalmente nas cidades. No Concilio de Vienne-sur-le-Rhone, em 1311, os contestatários franciscanos fazem a acusação da cidade.

Crescimento e tomada de consciência urbana
Em nosso período termina o que Sidney Packard chama de revolução urbana do século XII. Embora não seja certo que haja uma revolução nas estruturas, é indubitável a existência de uma revolução quantitativa. O número de cidades e o de sua população conhecem entre 1150 e 1340, sobretudo entre 1150 e 1300, aproximadamente, um crescimento espectacular. Por certo, é difícil aventar cifras. Será preciso chegar ao fim do século XIII e principalmente ao início do XIV para que, a partir dos documentos fiscais provindos seja das cidades, seja do governo monárquico, os primeiros a proceder a recenseamentos depois do século XIII, que viu a sensibilização ao número e as instituições doravante habituadas a contar, urbanas e monárquicas, levantar listas de chefes de família tributáveis, se possam aventar aproximações documentadas. Restam, pois, métodos indirectos de avaliação dos quais o principal é a estimativa, delicada, do crescimento das superfícies urbanas ou urbanizadas. O aumento do perímetro das muralhas, o aparecimento de burgos e subúrbios, a multiplicação das paróquias, dos conventos e das casas permitem concluir por um considerável crescimento urbano e sugerir proporções. Os especialistas em demografia histórica são mais ou menos concordes em estimar que a população global do reino da França no mínimo duplicou entre os anos mil e 1328, passando de cerca de 6 milhões de habitantes para 13,5 milhões, 16 a 17 milhões com as regiões que desde então se tornaram francesas. Nesse número o crescimento da população deve ter sido proporcionalmente muito superior à média e da ordem, para nos mantermos prudentes, do triplo da população inicial; e múltiplos indícios levam a pensar que o essencial desse crescimento ocorreu entre 1150 e 1300, aproximadamente. Enfim, cumpre sublinhar que o impacto das variações da população urbana sobre a vida de uma nação é nitidamente maior que o das variações da população rural. Fernand Braudel escreveu: as cidades são como transformadores eléctricos; aumentam as tensões, precipitam as trocas, urdem incessantemente a vida dos homens..., são os aceleradores de todo o tempo da história. O peso dos homens é maior nas cidades. Essas cidades mais populosas afirmam ao mesmo tempo sua personalidade. Observou-se com humor, mas não sem exactidão, que os habitantes das novas cidades, e não todas, porque, cabe repeti-lo, a cidade medieval já não é a cidade da Antiguidade e da Alta Idade Média, não pensavam, ao obter os forais, as franquias, em criar uma cidade. Pensavam em formar uma comunidade capaz de fazer frente aos senhores, mas ainda sem nome próprio (cives, hospites, oppidani, isto é, cidadãos, hóspedes, habitantes de uma praça forte, ou ainda, simplesmente, habitatores, habitantes, ou mesmo incolae ou homines, termo ao mesmo tempo muito geral e que evoca um vínculo de dependência em face de um senhor), num lugar igualmente sem personalidade própria (civitas, ainda cidade, ou burgus, burgo, suburbium, subúrbio, oppidum, praça forte, ou mais vagamente locus, lugar, ou villa, que designa indistintamente cidade ou aldeia). O nome que esses beneficiários dos privilégios urbanos vão usar de preferência, burgenses, apenas continuará designando uma parte da população das cidades, mas a palavra francesa que o traduz, borjois, baptizará uma classe social, a burguesia, que triunfará no século XIX com o capitalismo e uma nova revolução urbana, a da cidade, nascida da revolução industrial. Quanto à própria cidade, é de facto o nome que ela vai tomar de preferência, ville, villa nas regiões de língua de oc, enquanto as regiões de fala germânica, essencialmente a Alsácia no que concerne à França urbana, adoptarão Stadt.
Nem sempre chegando à unidade física e jurídica, as cidades, entre 1150 e 1300, tomarão por si mesmas uma consciência a princípio física, separando-se quase sempre por muralhas do exterior não-urbano, adquirindo uma estrutura interna com pontos de referência emblemáticos. Num tempo em que a religião e a Igreja conferem a qualquer realidade sua expressão ideológica, um novo quadriculado eclesiástico de dois componentes, um transformado, da velha rede paroquial e outro, novo, dos conventos das ordens medicantes, nascidos no começo do século XIII, nas cidades e para as cidades, exprimirá essa primeira tomada de consciência urbana». In Jacques le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN 978-853-360-127-1.

Cortesia de LMartinsFontesE/JDACT