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«O
divórcio é um assunto difícil. Ainda mais, penso eu, quando a nossa cliente
declara autoritariamente que todos os homens são uns canalhas e acabamos por
ficar a remexer-nos desconfortavelmente no nosso assento, tentando que o nosso
pénis passe despercebido. Nem todos os homens, sra. Stephenson, ouso dizer. A
minha cliente ignora o meu sorriso cordial. Os seus olhos cinzentos movem-se
rapidamente, com desdém, pelo meu escritório forrado a painéis de carvalho. O
olhar dela pára, por momentos, na fotografia da minha mulher, numa moldura de
prata, encostada ao mata-borrão de pele, em cima da minha secretária; a sua
expressão de pena pela minha mulher coloca-me indubitavelmente junto dos
infelizes cujos pais negligenciaram os detalhes legais antes de se deitarem juntos.
Uma vez que acabo de garantir-lhe um acordo de sete dígitos extremamente generoso
por parte do ex-marido, considero o seu desdém por todos os membros do meu sexo
um pouco injusto. Ela põe-se de pé e eu levanto-me também, ajeitando a minha
gravata de seda. Estende-me um braço magricela de tweed cor-de-rosa; a sua mão
na minha parece um peixe molhado. É capaz de ter razão, sr. Lyon, diz
secamente. Talvez sejam apenas os homens com quem caso. O perfume dela é
pungente e excessivo: mijo de gato sintético. Demasiada maquilhagem; não consigo
imaginar-me a beijar aqueles lábios vermelhos melados. É o tipo de mulher que
se encontra toda esborratada nos lençóis de manhã, com a cara gravada na fronha,
como no sudário de Turim. Mas tem boas pernas. Esbeltas, barriga das pernas bonita,
tornozelos bem torneados. Mas não tem carne nos ossos e tem peito de rapaz. O meu
sorriso profissional não se desmancha, enquanto a acompanho até à porta. Esforço-me
por não julgar moralmente os meus clientes: distrai e não é produtivo. No
contexto das leis do divórcio não há lugar para emoções e sentimentalismos; já temos
suficientes por parte dos nossos clientes. A minha mulher, como é evidente, sendo
mulher, permite-se discordar. Eu considero-me meramente objectivo. A Malinche, todavia,
afirma que a minha verdade brutal, como ela emotivamente lhe chama, é o mesmo que
julgar a pele de uma mulher apenas à cruel luz do dia, em vez de ser à suave luminosidade
do fogo. Não consigo perceber exactamente o que quer dizer. A minha cliente
pára subitamente à entrada; quase esbarro nela. Tem a sua cabeça baixa, como se
rezasse, expondo vértebras suaves, pálidas, por baixo do seu denso e curto cabelo
loiro. A nuca de uma mulher, tão vulnerável, tão quixotescamente erótica. Sempre
pensei..., esperei, silenciando o choro, que ele mudasse de ideias. Sinto-me
perdido. Sem dúvida que nunca pensei que esta mulher fosse obstinada. Ainda perto
dos quarenta, já tinha arranjado um trio remunerativo de ex-maridos ricos, o que,
apesar de todos os esforços de objectividade, leva a fazer determinadas suposições.
Em suma: a última coisa que estava à espera era que o amor viesse à baila. Os ombros
magros da mulher começam a tremer. Oh, meu Deus. Sou um inútil nestas
situações. Os meus braços crispam-se em vão. É completamente inapropriado abraçar,
mas o que fazer se, Deus queira que não, ela começar a chorar descontrolada? Subitamente,
ergue a cabeça e endireita os ombros, recordando-me a minha filha mais velha, Sophie,
no seu primeiro dia de escola. Sem uma palavra, atravessa, determinada, a ampla
secretaria e passa para lá do hall. Dou um pesado suspiro de alívio. Graças a Deus.
Que raio foi aquilo? Quando vou a fechar a minha porta, Emma, a minha
secretária, acena. Sr. Lyon, tem a sua esposa na linha dois. Pede desculpa por
estar a incomodá-lo, mas queria saber se pode dar-lhe uma palavrinha rápida? Com
certeza. Hesito à entrada da porta. Há qualquer coisa, não consigo
exactamente... É o meu cabelo, sr. Lyon, diz a Emma pacientemente. Fui cortá-lo
à hora de almoço. Uma pena. Gostava bastante dele comprido. Regresso à minha
secretária e olho para a fotografia de Malinche, que tanto contribuiu para a
compaixão irritante da minha cliente, enquanto levanto o telefone. Foi tirada
há dois Natais atrás, irritantemente, pelo Kit, em vez de por mim, no momento
em que sorrindo, olhou por cima do ombro, semidobrada, para tirar o peru do
forno. Sinto um golpe de gratidão cada vez que olho para ela. É tolo, eu sei, mas,
mesmo passados dez anos, ainda me entusiasmo com as palavras a sua esposa. Como
é que eu consegui conquistar o coração desta mulher linda e extraordinária está
completamente para além da minha compreensão. Sinto-me eternamente grato por tê-lo
conseguido». In Tess Stimson, O Clube do Adultério, 2007, Publicações dom Quixote,
LeYa, 2009, ISBN 978-972-203-792-4.
Cortesia
de Pdom Quixote/JDACT