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Florença.
1290
«Com
uma mão trémula, o poeta atirou o bilhete ao chão. Ficou sentado por alguns
instantes, imóvel como uma estátua. Depois, cerrando os dentes, pôs-se de pé e
correu pela casa em alvoroço. Ignorando mesas e objectos frágeis, desdenhando
os outros habitantes da sua casa. Só desejava ver uma pessoa. Caminhou a passo
rápido pelas ruas da cidade, e quase começou a correr ao aproximar-se do rio.
Deteve-se na extremidade da ponte, a ponte que era sua e dela, e os seus olhos
rasos de água percorreram a margem adjacente do rio, procurando o mais ténue
vestígio da sua amada. Ela não se encontrava em parte alguma. E não voltaria. A
sua amada Beatriz tinha desaparecido.
O professor
Gabriel Emerson estava sentado na cama, nu, a ler La Nazione, o jornal
florentino. Acordara cedo no Palazzo Vecchio Penthouse do Gallery Hotel Art e
pedira que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto, mas não resistira a voltar
para a cama, para observar Julia, que ainda dormia. Estava deitada de lado,
voltada para ele, respirando tranquilamente, um diamante reluzindo-lhe na
orelha. Tinha as faces rosadas do calor do quarto, pois o sol que entrava pelas
portas envidraçadas incidia sobre a cama. Os lençóis estavam deliciosamente
amarrotados, cheirando a sexo e a sândalo. Os olhos de Gabriel brilhavam,
contemplando preguiçosamente a pele nua e os longos cabelos escuros de Julia.
Quando Gabriel retomava a sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu.
Preocupado, pôs o jornal de lado.
Julia
encostou os joelhos ao peito, enroscando-se. Murmúrios escaparam-se-lhe por
entre os lábios, e Gabriel aproximou-se, tentando, sem êxito, decifrar o que
ela dizia. Subitamente, o corpo dela contorceu-se, e Julia soltou um grito
cortante, debatendo-se contra o lençol que a envolvia. Julianne? Gabriel
pousou-lhe uma mão sobre o ombro nu, mas ela afastou-se. Julia começou a murmurar
o nome dele, uma e outra vez, num pânico crescente. Julia, estou aqui, disse
Gabriel, falando alto. Quando estendeu de novo a mão para lhe tocar, ela ergueu-se
em sobressalto, arquejando. Estás bem? Gabriel aproximou-se, resistindo ao
impulso de lhe tocar. Sob o seu olhar cauteloso, Julia continuava ofegante,
agitando uma mão diante da cara. Julia? Ao fim de um minuto longo, tenso, ela
encarou-o, abrindo muito os olhos. Gabriel franziu o sobrolho. Que aconteceu? Julia
engoliu ruidosamente. Tive um pesadelo. Sobre quê? Estava no bosque junto à casa
dos teus pais, em Selinsgrove. As sobrancelhas de Gabriel uniram-se por detrás
dos seus óculos de aros escuros. Porque havias de sonhar com isso? Julia
respirou fundo e cobriu os seios, puxando o lençol até ao queixo. O tecido espesso
e branco envolveu toda a sua figura pequena antes de se encapelar, como uma
nuvem, sobre o colchão. Fez lembrar a Gabriel uma estátua ateniense.
Fala
comigo, Julianne, disse, passando-lhe suavemente os dedos sobre a pele. Ela
contorceu-se sob o seu olhar azul penetrante, mas Gabriel insistiu. O sonho
começou maravilhosamente. Fizemos amor à luz das estrelas e adormeci nos teus
braços. Quando acordei, tinhas desaparecido. Sonhaste que eu fazia amor contigo
e depois te abandonava?, perguntou Gabriel, num tom mais frio, tentando
mascarar o seu desconforto. Já uma vez acordei sem ti no pomal, censurou-o Julia,
calmamente. O fogo que Gabriel sentira no ventre extinguiu-se instantaneamente.
Recordou aquela noite mágica, seis anos antes, em que se tinham conhecido, uma
noite em que tinham apenas conversado e dormido abraçados. Gabriel acordara, de
manhã, e afastara-se, deixando uma adolescente adormecida completamente
sozinha. A ansiedade de Julia era compreensível, e até comovente. Gabriel
soltou os dedos apertados de Julia, um a um, beijando-os com remorso. Amo-te,
Beatriz. Não vou deixar-te. Sabes isso, não sabes? Magoar-me-ia muito mais
perder-te agora. De sobrolho franzido, Gabriel rodeou-lhe o ombro com um braço,
puxando-a para si e fazendo-a pousar a cara no seu peito. Pensou na noite anterior,
e uma miríade de memórias invadiu-lhe a mente. Vira-a nua pela primeira vez e iniciara-a
na intimidade do amor. Julia partilhara a sua inocência com ele, e Gabriel
julgava tê-la feito feliz. Não havia dúvida de que fora uma das melhores noites
da vida dele. Ponderou esse facto por um instante. Arrependes-te do que
aconteceu esta noite? Não. Estou feliz por teres sido o meu primeiro. Era o que
queria desde que nos conhecemos. Gabriel acariciou-lhe a cara, percorrendo-lhe
a face com o polegar. É uma honra ter sido o teu primeiro. Inclinou-se para
ela, sem pestanejar. Mas quero ser o último». In Sylvain Reynard, O Êxtase de
Gabriel, 2012, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-504-1.
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