terça-feira, 5 de julho de 2016

O Projecto Janus. Philip Kerr. «O seu sogro morreu e disse que a sua mulher estava hospitalizada. Mas continua a falar no plural. Como se cá estivesse mais alguém. Hábito de gerente de hotel, justifiquei-me»

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«(…) Nesse momento, ele olhou para mim e uma expressão divertida assomou-lhe aos olhos. São álamos, não são? Inclinou-se para olhar pela janela na direcção do campo. Aposto que lhe agradam. Quero dizer, quase não se percebe que o campo fica ali, não é? Muito útil. Ignorando a acusação implícita no seu tom, fui ter com ele à janela. E eu a pensar que se tinha perdido. Não, não, corrigiu o americano. Não me perdi. Andava à procura deste sítio. Isto é, se é que estou no Hotel Schroderbrau. Sim, é o Hotel Schroderbrau. Então, estamos no sítio certo. O americano tinha cerca de um metro e setenta de altura, mas mãos e pés demasiado pequenos para o seu tamanho. A camisa, a gravata, as calças e os sapatos eram de tons diferentes de castanho, mas o casaco, de um tweed claro e também de bom corte. O rolex de ouro no pulso esquerdo disse-me que provavelmente tinha um carro melhor do que o Buick estacionado na garagem de sua casa, na América. Preciso de dois quartos para duas noites, explicou. Para mim e para o meu amigo no carro. Lamento informá-lo, mas o nosso hotel não está autorizado a hospedar americanos, desculpei-me. Posso perder o alvará. Eu não digo a ninguém se o senhor não disser, declarou. Por favor, não me leve a mal, retorqui, pondo à prova o inglês que andava a aprender sozinho. Mas, para ser franco, estamos quase a fechar. Este hotel pertencia ao meu sogro, antes de ele falecer.
Eu e a minha mulher temos tido muito pouco sucesso. Por razões óbvias. E agora que ela está doente... Encolhi os ombros. Além disso, não sou grande cozinheiro, e vejo perfeitamente que o senhor é uma pessoa que aprecia o conforto. Ficaria mais bem instalado noutro hotel. Talvez no Zieglerbrau ou no Hôrhammer, do outro lado da cidade. Têm ambos autorização para receber americanos e um excelente café. Sobretudo o Zieglerbrau. Devo então concluir que não tem hóspedes no hotel?, perguntou ele, ignorando as minhas objecções e tentativas para falar inglês. Podia não ter um bom sotaque alemão, mas a gramática e o vocabulário eram irrepreensíveis. Não, respondi. Estamos vazios. Como já lhe expliquei, iremos fechar em breve. Só perguntei porque está sempre a falar no plural, notou ele. O seu sogro morreu e disse que a sua mulher estava hospitalizada. Mas continua a falar no plural. Como se cá estivesse mais alguém. Hábito de gerente de hotel, justifiquei-me. Sou só eu e o meu sentido impecável de serviço.
O americano tirou uma garrafa de meio litro de whisky de centeio do bolso do casaco e levantou-o de maneira a que eu visse o rótulo. Esse impecável sentido de serviço dará direito a dois copos lavados? Dois copos? Claro. Não fazia ideia do que ele queria. Não tinha ar de quem estava à espera de desconto nos quartos. Se se tinha chamuscado em algum lado, ainda não me cheirava a esturro. Além disso, o rótulo do whisky não tinha nada de mal. E o seu amigo no carro? Não nos faz companhia? Ele? Oh, é abstémio. Fui ao escritório e peguei em dois copos. Antes de poder perguntar se ele queria água com o whisky, o americano tinha enchido os dois copos pela borda. Levantou o copo contra a luz e disse lentamente: sabe, o senhor faz-me lembrar alguém, só não sei quem. Deixei passar o comentário. Era uma observação que só um americano ou um inglês poderia ter feito. Actualmente, na Alemanha, ninguém se quer lembrar de nada nem de ninguém. O privilégio da derrota. Hei-de acabar por me lembrar, declarou, abanando a cabeça. Nunca me esqueço de uma cara. Mas não é importante. Bebeu o whisky e afastou o copo para o lado. Provei o meu. Era bom whisky e disse-lhe isso mesmo. Ouça, retomou ele. Acontece que o seu hotel é ideal para o que pretendo. Como disse, preciso de dois quartos para uma ou duas noites. Depende. Seja como for, tenho dinheiro para gastar. Dinheiro vivo. Tirou do bolso de trás um maço de marcos alemães novinhos em folha, retirou uma mola prateada e contou cinco notas de vinte no balcão à minha frente. Era umas cinco vezes mais do que o preço normal de dois quartos para duas noites. O género de dinheiro que não gosta de muitas perguntas. Acabei a bebida e deixei os meus olhos vaguearem até ao passageiro ainda sentado no Buick e senti-os estreitarem-se, quando, um tanto míope, lhe tentei tirar a pinta. Mas o americano antecipou-se-me.
Está a interrogar-se sobre o meu amigo, perguntou. Se será do tipo que gosta de abafar a palhinha. Serviu mais duas bebidas e sorriu. Não se aflija. Não temos muita queda um para o outro, se é nisso que está a pensar. Tudo menos isso, por acaso. Se lhe perguntasse o que ele pensa de mim, imagino que lhe diria que não me pode ver à frente, o sacana. Bom companheiro de viagem, comentei. Digo sempre que uma viagem a dois proporciona o dobro das recordações felizes. Peguei na segunda bebida. No entanto, ainda não tinha tocado nos cem marcos, pelo menos com a mão. Os meus olhos, porém, pousavam nas notas e afastavam-se delas, e o americano, reparando, disse: força. Guarde o dinheiro. Ambos sabemos que precisa dele. Este hotel não tem hóspedes desde que o meu governo acabou de julgar e sentenciar os criminosos de guerra de Dachau, em Agosto passado. Passou quase um ano, não foi? Não admira que o seu sogro se tenha suicidado. Não disse nada. Mas começava a cheirar-me a esturro». In Philip Kerr, O Projecto Janus, 2006, tradução de Isabel Alves, Porto Editora, Porto, 2010, ISBN 978-972-004-298-1.

Cortesia de PEditora/JDACT