Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Naquele dia, os médicos demoraram além da conta para chegar ao palácio. Foi necessário
ir buscar a parteira extramuros da cidade, e quando a equipe necessária para
auxiliar a princesa, finalmente, se reuniu a seu lado, já
era tarde demais. O cordão umbilical que alimentava o futuro Leon Maria Sforza
havia-se enroscado em volta do frágil pescoço do bebé. Pouco a pouco, com a
precisão de uma corda, foi apertando sua pequena garganta até asfixiá-lo.
Beatrice logo notou que alguma coisa estava errada. Seu filho,
que um segundo antes lutava com força para sair de suas entranhas,
paralisou-se. Primeiro se agitou com violência e, a seguir, como se o esforço o
houvesse murchado, languesceu até expirar. Percebendo isso, os médicos abriram
de lado a lado a mãe, que se retorcia de dor e desespero, apertando um pano
banhado em vinagre entre os dentes. Foi inútil. Desesperados, só encontraram um
bebé azulado e morto, com seus olhinhos claros já vidrados, enforcado no útero
materno. E foi assim que, arrasada de dor, sem tempo para aceitar o duro revés
que a vida acabava de lhe dar, a própria Beatrice decidiu-se extinguir horas
mais tarde. Em seu informe, o prior Bandello dizia que chegou a tempo de vê-la
agonizar. Ensanguentada, com as entranhas expostas e banhada em uma pestilência
insuportável, delirava de dor, pedindo aos gritos para se confessar e comungar.
Mas, felizmente para nosso irmão, Beatrice d’Este morreu antes de receber qualquer
sacramento. E digo bem: felizmente.
A
duquesa tinha apenas 22 anos quando deixou nosso mundo. Betânia sabia que ela
havia levado uma vida pecaminosa. Desde os tempos de Inocêncio VIII, eu mesmo
havia tido oportunidade de estudar e arquivar muitos documentos a esse respeito.
Os mil olhos da Secretaria de Códigos dos Estados Pontifícios conheciam bem o
tipo de pessoa que havia sido a filha do duque de
Ferrara. Ali dentro, em nosso quartel-general do monte Aventino, podíamos nos
orgulhar de que nenhum documento importante gerado nas cortes europeias
escapava à nossa instituição. Na Casa da Verdade, dezenas de leitores
examinavam diariamente textos em todos os idiomas, alguns codificados com as
artimanhas mais impensáveis. Nós os decifrávamos, classificávamos por
prioridades e os arquivávamos. Mas não todos. Os referentes a Beatrice d’Este
havia tempo que ocupavam um lugar prioritário em nosso trabalho e eram
armazenados em uma sala à qual poucos tinham acesso. Tão inequívocos documentos
mostravam uma Beatrice possuída pelo demónio do ocultismo. E, o que era ainda
pior, muitos aludiam a ela como a principal impulsora das artes da magia na
corte do Mouro. Em uma terra tradicionalmente permeável às heresias mais sinistras,
aquele dado deveria ter sido levado muito em conta. Mas ninguém o fez a tempo. Os
dominicanos de Milão, entre eles o padre Bandello, tiveram várias vezes a seu
alcance provas de que tanto donna Beatrice quanto sua irmã Isabela, em Mântua,
coleccionavam amuletos e ídolos pagãos, e que ambas professavam veneração
desmedida aos vaticínios de astrólogos e charlatães de toda espécie. E nunca fizeram
nada. As influências recebidas por Beatrice foram tão nefastas que a pobre
passou seus últimos dias convencida de que nossa Santa Madre Igreja se extinguiria
muito brevemente. Frequentemente, dizia que a cúria seria arrastada até o Juízo
Final e que ali, entre arcanjos, santos e homens puros, o Pai Eterno condenaria
todos nós sem piedade. Ninguém em Roma conhecia melhor que eu as actividades da
duquesa de Milão.
Lendo
os informes que chegavam sobre ela, aprendi quão sibilinas podem ser as mulheres,
e descobri quanto donna Beatrice havia mudado os hábitos e objectivos de seu
poderoso marido em apenas quatro anos de casamento. Sua personalidade chegou a
me fascinar. Crédula, entregue a leituras profanas e seduzida por todas as
ideias exóticas que circulavam por seu feudo, sua maior obsessão era transformar
Milão na herdeira do antigo esplendor dos Medicis de Florença. Acho que foi
isso que me alertou. Embora a Igreja houvesse conseguido minar aos poucos os
pilares de tão poderosa família florentina, debilitando o apoio que dera a
pensadores e a artistas amigos do heterodoxo, o Vaticano não estava preparado
para enfrentar um renascimento daquelas ideias na grande Milão do norte. As
cidades com a marca dos Medicis, a recordação da academia fundada por Cosme, o
Velho, para resgatar a sabedoria dos antigos gregos, ou sua protecção desmedida
a arquitectos, pintores e escultores fecundaram tanto a fértil imaginação da
princesa Beatrice quanto a minha. Mas ela as tomou como guias de sua fé e contagiou
o duque com o veneno de seu fascínio. Desde que Alexandre vi chegara ao trono
de Pedro, em 1492, passei a enviar mensagens a meus superiores hierárquicos
para preveni-los sobre o que ali poderia ocorrer. Ninguém me deu ouvidos.
Milão, tão próxima à fronteira com a França e com uma tradição política tão
rebelde em relação a Roma, era a candidata perfeita para abrigar uma cisão
importante no seio da Igreja. Betânia também não acreditou em mim. E o papa,
manso com os hereges, apenas um ano depois de ter assumido a tiara já havia
pedido perdão pelo acossamento a cabalistas como Pico della Mirandola, ignorou
todas as minhas advertências. Esse frei Agustín Leyre, costumavam dizer de mim
os irmãos da Secretaria de Códigos, dá muita atenção às mensagens do Áugure.
Vai acabar tão maluco quanto ele». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013,
Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.
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