Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Áugure
«(…)
Essa é a peça que falta para montar este quebra-cabeça. Sua presença merece uma
explicação. É que, além de meus avisos ao santo padre e às mais altas
instâncias da ordem dominicana sobre o rumo errático que tomava o ducado de
Milão, existia outra fonte de informação que abundava em meus temores. Era uma
testemunha anónima, bem documentada, que toda semana remetia a nossa Casa da
Verdade cartas detalhadíssimas, denunciando a deflagração de uma gigantesca
operação de magia nas terras do Mouro. Suas missivas começaram a chegar no Outono
de 1496, quatro meses antes da morte de donna Beatrice. Eram enviadas à sede da
ordem em Roma, no convento de Santa Maria sopra Minerva, onde eram lidas e
guardadas como se fossem a obra de um pobre diabo obcecado com os pretensos
desvios doutrinais da casa Sforza. E não os culpo. Vivíamos tempos loucos, e as
cartas de um visionário não eram muito favoráveis a nossos padres superiores. Ou
a quase todos. Foi o arquivista de Minerva que me falou dos escritos desse novo
profeta na assembleia geral de Betânia. Deveria lê-las, disse. Assim que as vi
pensei em você. Verdade? Lembro-me dos olhos de coruja do arquivista, pestanejando
de emoção. É curioso: foram escritas por alguém com os mesmos temores que você,
padre Leyre. Um profeta apocalíptico, culto, muito versado em gramática, como a
cristandade não via desde os tempos de frei Tanchelmo de Antuérpia. Frei
Tanchelmo? Oh… Um velho maluco do século XII, que denunciou a Igreja por ter se
transformado em um bordel e acusava os sacerdotes de viver em concubinato permanente.
Nosso Áugure não chega a tanto, mas, pelo tom de suas cartas, não creio que
tarde muito a chegar. O arquivista, encurvado e resmungão, acrescentou algo
mais: sabe o que o faz diferente de outros loucos? Balancei a cabeça
negativamente. Que parece mais bem informado que qualquer um de nós. Esse
Áugure é maníaco por precisão. Sabe de tudo! Aquele frade tinha razão. Suas
folhas de papel amarelado e fino, escritas com uma
caligrafia impecável e amontoadas em uma caixa de madeira com o carimbo de reservado,
referiam-se com obsessiva insistência a um plano secreto paratransformar Milão
em uma nova Atenas. Algo assim era o que eu suspeitava já fazia tempo. O Mouro,
como os Medicis antes dele, estava entre esses dirigentes supersticiosos que
acreditavam que os antigos possuíam conhecimentos do mundo muito mais avançados
que os nossos. Era uma velha ideia, essa. Segundo ela, antes de Deus castigar o
mundo com o dilúvio, a humanidade havia desfrutado de uma Idade do Ouro
próspera, que primeiro os florentinos e agora
o duque de Milão queriam reinstaurar a todo custo. E, para isso, não hesitariam
em deixar de lado a Bíblia e os preconceitos da Igreja, cientes de que, naquele
tempo de glória, Deus ainda não havia criado uma instituição que o
representasse.
Mas
ainda havia mais: suas cartas insistiam em que a pedra angular daquele projecto
estava sendo colocada debaixo do nosso nariz. Sendo certo o que dizia, a astúcia
do Mouro era infinita. Seu plano para transformar seu feudo na capital do renascimento
da filosofia e da ciência dos antigos se
apoiaria sobre uma coluna desconcertante: nada menos que nosso novo convento em
Milão. O Áugure conseguiu me surpreender. Fosse quem fosse o homem que se escondia
por trás dessas revelações, ele as havia levado mais longe do que eu jamais me
teria atrevido. Como me advertiu o arquivista, parecia ter olhos em todos os
lugares. Já não só em Milão, e sim na própria Roma, pois algumas de suas
últimas cartas vinham encabeçadas por um Augur
dixit que nos desconcertou. que tipo de confidente estávamos enfrentando?
Quem, senão alguém muito enfronhado na cúria, poderia saber como o designavam os
escrivães de Betânia? Nenhum de nós soube a quem apontar. Naqueles dias, o
convento a que se referia em suas mensagens, o de Santa Maria delle Grazie,
estava em obras. O duque de Milão havia designado os melhores arquitectos do
momento para sua edificação: encomendou o púlpito da igreja a Bramante, os
interiores a Cristoforo Solari, e não economizou uma moeda no pagamento dos
melhores artistas para que decorassem cada uma de suas paredes. Queria
transformar nosso templo no mausoléu de sua família, o lugar de repouso eterno,
que imortalizaria sua memória pelos séculos dos séculos. Contudo, o que para os
dominicanos era um privilégio, para o autor daquelas cartas era uma terrível
maldição. Anunciava grandes penalidades para o papa, se ninguém pusesse fim àquele
projecto, e augurava uma época negra, fatal, para a Itália inteira. O anónimo
remetente daquelas mensagens havia conquistado a pulso, de facto, o apelido de Áugure.
Sua visão da cristandade não podia ser mais nefasta.
Ninguém
deu ouvidos àquele anónimo diabo até à manhã que chegou a sua 15ª missiva. Nesse
dia, frei Giovanni Gozzoli, meu assistente em Betânia, irrompeu no scriptorium em grande alvoroço. Agitava
no ar uma nova mensagem do Áugure, e, alheio aos olhares reprovadores dos
irmãos que ali estudavam, dirigiu seus passos para minha mesa: frei Agustín,
deve ver isto! Deve lê-lo de imediato! Eu nunca havia visto frei Giovanni tão
alterado. O jovem frade passou a nova carta à frente dos meus olhos, e, com a
voz muito afectada, sussurrou: é incrível, padre. In-crí-vel. O que é incrível,
irmão? Gozzoli respirou fundo: a carta. Esta carta… O Áugure… Mestre Torriani
pediu que a lesse de imediato. O mestre? O piedoso Gioacchino Torriani, 35º
sucessor de São Domingos de Gusmão na Terra e principal responsável por nossa
ordem, nunca havia levado a sério aquelas mensagens anónimas. Despachara-as com
indiferença e, em algumas ocasiões, até me recriminara por lhes dedicar meu
tempo. Por que havia mudado de atitude? Por que me enviava essa nova carta com
o pedido de que a examinasse de imediato? O Áugure… Gozzoli engoliu em seco. Sim?
O Áugure descobriu em que consiste o plano. O plano? A mão de frei Giovanni
ainda segurava a mensagem. Tremia em razão do esforço. A carta, uma folha com o
selo de lacre partido, pousou suavemente sobre minha mesa. O plano do Mouro,
sussurrou meu secretário, como se deixasse ali uma pesada carga. Não entende,
frei Agustín? Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle
Grazie. Quer fazer magia! Magia?, eu estava atónito. Leia!» In
Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
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