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Até mesmo o próprio milorde escocês, George Louis Hauksbank, lorde Hauksbank
desse nome, o que quer dizer, segundo o costume escocês, Hauksbank de
Hauksbank, um nobre a não se confundir com outros Hauksbank menores, mais
ignóbeis, de locais inferiores, foi rapidamente seduzido quando levaram o
intruso arlequim à sua cabine para julgamento. Naquele momento, o jovem
malandro chamava a si mesmo de Uccello, Uccello di Firenze, mágico e pensador,
a seu serviço, disse em inglês perfeito, com uma curvatura ampla e profunda de
perícia quase aristocrática, e lorde Hauksbank sorriu e aspirou seu lenço
perfumado. O que eu podia acreditar, mago, respondeu, se não conhecesse o
pintor Paolo do mesmo nome e lugar, que criou em sua cidade o afresco trompe-l’oeil do Duomo em honra de meu
próprio ancestral sir John Hauksbank, conhecido como Giovanni Milano,
mercenário, antigo general de Florença, vencedor da batalha de Polpetto; e se
esse pintor não tivesse, infelizmente, morrido há muitos anos. O jovem malandro
discordou com um estalo irónico da língua. Evidente que não sou o artista
morto, declarou, arrogante. Escolhi esse pseudónimo di viaggio porque na minha língua é a palavra que temos para pássaro,
e pássaros são os maiores viajantes. Então tirou do peito um falcão escondido,
do ar uma luva de falcoeiro e entregou ambos ao assombrado lorde. Um falcão
para o lorde Barra do Falcão, Hauksbank, disse, com perfeito formalismo, e
então, quando lorde Hauksbank havia calçado a luva e tinha o falcão sobre ela,
ele, Uccello, estalou os dedos como uma mulher que retira o seu amor, com o que,
para grande desapontamento do milorde escocês, ambos desapareceram, o pássaro enluvado
e a luva empassarada. Além disso, continuou o mágico, retomando a
questão de seu nome, porque em minha cidade esse véu de uma palavra, esse
pássaro oculto, é um delicado eufemismo para o órgão sexual masculino, e tenho
orgulho do que possuo mas não tenho o mau gosto de mostrar. Ha! Ha!, gritou
lorde Hauksbank desse nome, recuperando a pose com admirável rapidez. Isso
agora nos dá algo em comum. Ele era um mui viajado milorde, esse Hauksbank
desse Nome, e mais velho do que parecia. Tinha um olho brilhante e a pele
clara, mas já estava a sete anos ou mais de seus quarenta anos. Sua habilidade
com a espada era proverbial, era forte como um touro branco e tinha viajado de
jangada até à cabeceira do rio Amarelo no lago Kar Qu, onde comeu pénis de
tigre guisado numa tigela de ouro e caçou o rinoceronte branco da cratera do
Ngorongoro e escalou todos os duzentos e oitenta e quatro picos das Munros
escocesas, de Ben Nevis até o Inacessível Pináculo de Sgurr Dearg na ilha de
Skye, morada de Scáthach, a Terrível. Há muito tempo, no castelo de Hauksbank,
ele brigou com a esposa, uma mulherzinha feroz de cabelo vermelho encaracolado
e queixo igual a um quebra-nozes holandês, deixou-a nas Highlands a pastorear
ovelhas negras e partiu em busca de sua fortuna como seus ancestrais antes
dele, capitaneando um navio a serviço de Drake quando piratearam o ouro das
Américas dos espanhóis no mar do Caribe. Sua recompensa de uma rainha
agradecida havia sido a embaixada da qual agora se ocupava; precisava ir ao Hindustão,
onde tinha carta branca para recolher e conservar qualquer riqueza que pudesse encontrar,
fosse em pedras preciosas, ópio ou ouro, contanto que entregasse uma carta pessoal
da Gloriana ao rei e trouxesse de volta a resposta do Mogol. Na Itália, dizemos
Mogor, contou o jovem prestidigitador. Na língua impronunciável da própria
terra, lorde Hauksbank completou, quem sabe como a palavra pode ser torcida,
amarrada e revirada?
Um
livro selou a amizade deles: o Canzoniere,
de Petrarca, uma edição que se achava, como sempre, ao alcance da mão do
milorde escocês numa mesinha de pietra
dura. Ah, o poderoso Petrarca, Uccello
gritou. Esse, sim, é um verdadeiro mágico. E assumindo a pose de oratória de um
senador romano, começou a declamar:
Benedetto
sia ’l giorno, et ’l mese, et l’anno,
et
la stagione, e ’l tempo, et l’ora, e ’l punto,
e ’l
bel paese, e ’l loco ov’io fui giunto
da’duo
begli occhi che legato m’ànno...
Diante
disso, lorde Hauksbank pegou o fio do soneto:
… bendita
a primeira doce aflição
que
tive ao ser com Amor dominado,
o
arco e flecha com que fui perfurado,
e as
chagas que trago no coração.
Qualquer
homem que ame esse poema como eu amo, será meu senhor, disse Uccello fazendo
uma reverência. E qualquer homem que sinta o que sinto por essas palavras
beberá comigo, retrucou o escocês. Você girou a chave que abre meu coração. Agora
tenho de contar a você um segredo que você não revelará nunca a ninguém. Venha comigo.
Numa pequena caixa de madeira escondida atrás de um painel deslizante em seu
quarto de dormir, lorde Hauksbank desse Nome conservava uma colecção de objetos
de virtude, lindas pecinhas sem as quais um homem que viaja constantemente pode
perder o rumo, porque viajar demais, como lorde Hauksbank bem sabia, ou
estranhezas e novidades demais, podem soltar as amarras da alma. Estas coisas
não são minhas, ele disse a seu novo amigo florentino, mas elas me lembram quem
sou. Ajo como zelador delas por algum tempo, e quando esse tempo termina deixo
que se vão». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote,
2008, ISBN 978-972-203-692-4.
Cortesia de
PdQuixote/JDACT