jdact
e wikipedia
«No primeiro minuto do meu sonho, tenho
visões de corpos dançando, cujas formas me são perfeitamente familiares, iluminados
por um estonteante conjunto de luzes». In 1791, Casanova
«Doze
de Setembro de 1791. Engarrafamento em duas ruas de Praga. Os cavalos se
mostram nervosos com os clarões e os fogos de artifício. A comida, transportada
em carretas do mosteiro de Prikopy para o baile da coroação, é escoltada por
soldados diante da multidão faminta. Um veneziano de 66 anos caminha com passos
firmes da carruagem de seu patrão até às luzes do pórtico do teatro Nostitz. Apenas
alguns dias antes, ele assistira ali à estreia da nova obra de Mozart, composta
em homenagem ao recém-coroado imperador. Porém La Clemenza di Tito não
agradou a Giacomo Casanova, e muito menos ao grupo real a quem a obra fora
dedicada: a jovem imperatriz zombou dela, declarando que Herr Mozart tinha
composto uma porcheria tedescha, uma ópera pior do que uma salsicha
alemã ordinária. Casanova preferia Don Giovanni. Ele havia colaborado no
libreto e assistido à première naquele mesmo teatro. Se assisti?,
teria respondido ele a seu velho amigo Da Ponte, o libretista veneziano. Praticamente
vivi tudo aquilo.
Desde
a estreia da ópera, algumas transformações tinham sido feitas no teatro. Quando
Casanova atravessou a plateia, seguindo por trás das poltronas do Nostitz,
abriu-se diante dele uma visão que lhe chegava directamente de sua infância em
Veneza. Para além da boca de cena, onde apenas uma semana antes existia um
palco, depois das cortinas suspensas, onde a lista das conquistas de dom
Giovanni foi apresentada pela primeira vez, via-se um cenário de pano: um pátio
de seis metros de comprimento montado para o baile de coroação daquela noite.
Ele se prolongava para trás, para além do poço da orquestra, da plataforma de
cargas e mesmo da parede dos fundos do palco, demolida pelo imperial professor
de engenharia de Praga, a fim de que o salão em forma de galeria pudesse se
esticar para fora do ponto de fuga da perspectiva do palco, como se chegasse ao
infinito. Forrado por oito mil varas de linho vermelho da Boémia, o salão-palco
ficou lotado com a corte inteira dos Habsburgo, que dançava com a música da
orquestra imperial de Antonio Salieri, comprimida nos camarotes do teatro. A
cena era reflectida por uma dupla falange de espelhos venezianos. Os
cortinados, os fios de ouro, os candelabros e o falso mármore, as cornijas e os
céus em trompe l’oeil: todo um mundo por apenas uma noite, além da arte
ou da razão, formado de gesso e tecidos, desaparecia pelo proscénio. Aquela
noite de 1791 no Nostitz marcou o final de uma era. A França fora tomada pela
revolução, e sua rainha, a irmã do novo imperador, foi presa. Para muitos
daqueles seis mil aristocratas no palco do Nostitz, sob os céus pintados de Giovanni
Tartini, aquela seria a dança derradeira no mundo que eles conheciam: sua
última performance no Carnaval de Veneza, o último de tantos bailes de
máscaras.
Quando
criança, Casanova tinha assistido a espectáculos semelhantes. Todos os anos em
Veneza, na Festa da Ascensão, quando o doge realizava o ritual das núpcias da
República de Veneza com o mar, e a cidade inteira se entregava ao Carnaval, os
venezianos esperavam desfrutar seus teatri del mundo. Havia dois tipos.
Um era um palco flutuante, que pertencia à República. Este ficava atracado
diante da piazzeta São Marcos e era usado para espectáculos patrocinados
pelo Estado, encenações mirabolantes de contos míticos e fábulas celestiais nas
quais se destacavam aristocratas trajados de maneira esplendorosa e fogos de
artifício. Além disso, havia também, na praça São Marcos, situada nas proximidades,
pequenos espectáculos de lanterna mágica encenados nas ruas: lampejos da
escuridão para um mundo ao mesmo tempo sublime e ridículo, iluminações de rinocerontes,
monstros, imagens americanas e amorosas, recriadas à luz de caixas com
lanternas para um admirável mundo novo de consumidores voyeuristas. Por esse
motivo, esses pequenos teatro del mundo também eram conhecidos como mondi
nuovi: novos mundos. A julgar pelas anotações de Casanova sobre seus
sonhos, descobertas no arquivo de Praga, que agora abriga suas notas um tanto
esparsas (uma descoberta incalculavelmente excitante para o biógrafo), sua
mente se voltou para esses teatri a partir daquela noite de 1791, quando
ele passou a sonhar com o Nostitz em visões surrealistas de seres humanos que
dançavam nus, olhos e narizes, órgãos genitais de ambos os sexos e outras
partes do corpo cujas formas me são tão familiares. O grande cronista do século
foi testemunha daquele último baile: a corte dos Habsburgo criando o seu
próprio teatro del mundo sob a forma de corpos humanos cabriolando
atordoados sob as luzes do teatro, reflectidos nos espelhos, dançando em meio
aos cenários.
De
Praga, Casanova retornou à sua escrivaninha, na biblioteca onde trabalhava, num
castelo frio da Boémia. Seus sonhos estavam cheios de recordações perturbadas,
porém ele passava os dias se dedicando a uma narrativa mais bem estruturada, a
qual jamais veria publicada: o registo de pessoas, lugares, odores, sabores, do
sexo e da sensibilidade do século anterior à revolução. O século XVIII de
Casanova fora em muitos sentidos um teatro del mundo: um mundo
escravizado pelo teatro. Moldada e espelhada em suas luzes e na sua literatura,
deliciando-se nos artifícios do teatro, a vida dele, segundo suas anotações de
sonhos e memórias, estruturou-se por essa ideia de desempenho, uma vez que ele
foi formado pelas perspectivas mutáveis e reflexivas de Veneza e de sua commedia
dell’arte.
Nascido
em Veneza, então uma capital do teatro, oriundo de uma família de actores, ele
viajou a vida inteira por toda a Europa, seguindo a antiga tradição dos
mascarados venezianos. Mais do que isso, seu sucesso na vida e no amor, como
libertino e libertário, foi obtido por sua capacidade de reinventar a si mesmo,
de jogar todas as suas cartas em benefício próprio e de viver inteiramente para
um presente estonteante. Naquela noite em 1791, é provável que não lhe tenha
escapado a ironia, a ele, que era capaz de se sentir vivo apenas por meio das
recordações e da escrita, de o mundo parecer compreender mais a fundo as
alegrias da vida quando está diante do drama de sua recriação artificial. Sua
obra-prima, história da minha vida, dá vida, como nenhum outro documento,
ao século em que ele viveu, mas a alegria com que ele construiu sua vida,
singularmente própria de um actor, permanece também como testamento para uma
nova compreensão do eu. Como qualquer veneziano sabe, existe a máscara, e
também a substância por trás dela, e um novo alvorecer revolucionário procurou
compreender a personalidade com referência a ambas». In Ian Kelly, Casanova, 2008, Aletheia
Editores, colecção nº 1, 2009, ISBN 978-989-622-175-1.
Cortesia de
AletheiaE/JDACT