Cortesia
de wikipedia e jdact
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Os problemas relacionados com a identificação e a antroponímia femininas não
são fáceis de resolver. Já vários investigadores que se interessaram pelo
assunto foram confrontados com o facto e reconheceram as dificuldades. Com
efeito, mercê do papel subalterno das mulheres na sociedade medieval, do seu
acantonamento, tanto quanto possível, dentro da esfera dos assuntos privados,
são poucas aquelas que nos chegam iluminadas pela luz da documentação. Muito
poucas mesmo, ao menos se as compararmos com o número de homens referidos nessa
mesma documentação. É preciso, por isso, para abordar a antroponímia feminina,
procurar com cuidado as fontes a utilizar, tentando encontrar aquelas onde a
presença das mulheres se tornava indispensável ou, ao menos, conveniente. De
entre essas fontes, aquelas que respeitam à propriedade, aos bens da família,
contam-se como das mais ricas.
Com
efeito, na legislação medieval portuguesa, como, aliás, na de todos os países
hispânicos da época, o acesso aos bens familiares era igual para homens e
mulheres, como as heranças eram recebidas tanto do lado paterno como do lado
materno. Assim, tratando-se de assuntos relativos à propriedade, todos tinham
que ser lembrados. Do mesmo modo, nos contratos de locação que regulavam as relações
entre o proprietário e o foreiro, a regra, e sobretudo quando se tratava de
prédios rurais, era que fosse o casal, marido e mulher identificados pelos
respectivos nomes, a assumir, em pé de igualdade, os deveres inerentes aos
termos do contrato. Falecido um deles, o cônjuge supérstite continuava, quer
tivesse ou não, junto de si, filhos com idade suficiente para lhe darem uma
ajuda eficaz, a ser responsável por todas as obrigações a que ambos se tinham
comprometido. Fosse esse cônjuge o marido ou a mulher. A documentação reflecte
isso mesmo.
Para
a presente análise escolhi duas regiões do sul de Portugal, provenientes das
quais existem, datadas das primeiras décadas do século XVI, alguns tombos de
propriedades onde as referências a mulheres, embora não abundantes, permitem,
no entanto, algumas considerações sobre bases que me parecem credíveis. São
essas regiões o Norte alentejano interior e o Algarve; são esses tombos aqueles
que nos foram facultados pela Ordem de Cristo, entre 1505-1509, respeitantes ao
Alentejo e pelo mesma Ordem, naquela última data, mas sobretudo pela de
Santiago em 1517 e 1518, para o Algarve. Não procurei apurar, para este
trabalho, o número de indivíduos documentados, mas o de registos. É sabido como
a antroponímia medieval podia ser fluida e a mesma pessoa podia ser nomeada de
formas diferentes, ainda mesmo quando o seu nome estava a ser registado pelo
mesmo escriba. Deste modo parece-me mais correcto tomar em consideração todas
as formas e sempre que elas ocorrem, até porque o meu intuito, de momento, não
é apurar dados antroponímicos, mas antes formas de identificação.
Mesmo
assim a colheita não foi muito abundante, pois somou apenas 501 registos, quase
equitativamente divididos entre ambas as regiões: 249 para o espaço alentejano,
252 para o algarvio. Penso, no entanto, que a homogeneidade das fontes, o breve
período cronológico por elas abrangido e o não excessivo alargamento dos
espaços, que, porém, quando se trata destas matérias e quando as mulheres são o
objecto de análise raramente podem ser muito restritos, lhes conferirá a
necessária credibilidade. De acordo com a maior ou menor visibilidade que cada
mulher conseguia dentro dos âmbitos sociais em que se movimentava, ela podia
ser designada e portanto conhecida pelo seu nome a que poderíamos chamar completo,
um nome próprio seguido por um outro elemento constituído, este, pelo
patronímico ou por um apodo, ou abreviado, apenas, embora raramente, o nome
próprio, com mais frequência um apodo. Por vezes, apensava-se-lhe uma expressão
clarificadora da identidade, uma adjunção nominal de qualquer tipo, usada
apenas quando necessário ou oportuno, eventualmente substituída por outra em
diferente ocasião. Como podia acontecer, também, com qualquer homem. Mas se
para estes era escolhida, de preferência, uma expressão que remetia para a
respectiva actividade profissional, para o seu estatuto social ou para qualquer
cargo por ele exercido, no caso das mulheres ela lembrava, na grande maioria
das vezes, uma relação familiar. Quer dizer, estas apresentavam-se geralmente
em público e assim nos são veiculadas pela documentação, com o seu nome apoiado
no de uma outra pessoa, quase sempre uma figura masculina, quase sempre um
homem da família. Ela precisava, para que a sociedade a pudesse identificar
cabalmente, de ser inserida num grupo de parentesco, o que se realizava com o
apoio de um dos seus membros masculinos. Mas ela podia mesmo ser de todo
ignorada pela comunidade, conhecendo esta a sua existência apenas na medida em
que lhe sabia uma qualquer ligação familiar, mas ignorando-a como indivíduo
autónomo. Essa ignorância podia ser tão profunda que não se lhe conhecesse nem
nome nem família.
Realidades
que outros autores também já deixaram registadas. Nestes casos a identidade era
expressa lembrando apenas a sua relação com a figura de apoio: a mulher de x, a
filha de y, a irmã de z, por exemplo, quando não apenas uma característica ou
uma circunstância que lhe poderia ser aplicada. Claro que também a alguns
homens acontecia, num caso ou outro, ser designados desta maneira e no acervo
documental que estou a analisar ocorrem alguns exemplos. Mas eles são sempre
residuais. Esta forma de designação só se torna expressiva quando se trata de
mulheres. É esta uma realidade que todos os medievalistas já tiveram
oportunidade de constatar. Mas, tanto quanto sei, ainda nunca foi quantificada
nem explorada. Tentarei aqui lançar alguma luz, fraca que seja, sobre o assunto.
Escolhi
para objecto de análise, como já acima ficou referido, dois espaços do Sul de
Portugal e de imediato as diferenças surgiram, muito nítidas: no Alentejo um
pouco mais de metade dos registos, 50,2%, mostrou mulheres que eram conhecidas
por si próprias dentro da sociedade local, que não precisavam apoiar-se em
ninguém para que todos pudessem situá-las e assim aceitá-las. No outro extremo
da visibilidade somaram um pouco menos de 9% os registos de mulheres cuja
identidade era ignorada; pelo contrário, no Algarve, as presenças femininas com
autonomia total deixaram-nos apenas 36,9% dos registos, enquanto aquelas que,
por assim dizer, se escondiam dos olhos do público ultrapassavam aquele valor,
subindo acima dos 38%.
Desde
logo estas realidades tão diferentes nos sugerem ambientes sociais com olhares
distintos diante da presença feminina: um deles em que as mulheres desfrutam de
grande visibilidade como indivíduos autónomos, embora em muitos casos o apoio
de uma figura tutelar possa considerar-se indispensável, o que parece indicar
uma actividade social desenvolvida pelas mulheres em variados aspectos do
quotidiano, eventualmente revestindo formas positivas e negativas, mas todas
elas obrigando a comunidade a reconhecê-las como seus membros; um outro em as
mulheres se escondiam, mostrando-se ao público apenas de forma nebulosa e como
integrantes de um grupo familiar, deixando apenas a um pequeno número delas,
talvez as mais desmunidas e que precisavam sair de casa para granjear o
sustento diário e as mais proeminentes, cuja identidade seria difícil de
camuflar, o cuidado de contactar mais directamente com a comunidade. Parece,
assim, que essa comunidade seria mais fechada em relação às mulheres, limitando
a sua actividade fora do âmbito doméstico, restringindo ao essencial o seu
aparecimento em público. Inevitavelmente, penso, somos levados a considerar o
maior peso que uma mais prolongada estadia muçulmana nesta região, com activos
grupos de mouriscos que a prolongaram no tempo, aqui teria deixado. De entre as
mulheres cuja identidade era conhecida, ela era-o de forma correcta, em ambos
os espaços, na maior parte das vezes». In Iria Gonçalves, Notas sobre a
Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média, Instituto de Estudos
Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.
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