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«(…)
Procure manter-se de pé, eu lhe peço..., gemeu. Curvou-se para entrar na
passagem. A criatura se queixava, mas finalmente começava a mexer-se. Isso
mesmo, vamos lá... Roçava nas paredes húmidas de musgo. Logo atrás, a criatura
avançava a duras penas. Os ruídos da luta abafaram-se à distância, e o coração
de Adrass deteve a sua louca corrida. Posso conseguir, acho que posso
conseguir... Por aqui!, berrou, virando-se ao chegar à primeira bifurcação, e
continuou em frente, até parar diante de uma parede. Chegámos, chegámos, disse
mais para si mesmo do que para a criatura. Com mãos trémulas empurrou um tijolo
e, à sua frente, descortinou-se um minúsculo aposento. Segurou um braço da
criatura e empurrou-a para dentro. Ela ensaiou um gemido de queixa. Quando
passou a mão no seu rosto, percebeu que estava molhado. Ela estava chorando.
Por um momento, o homem ficou com pena, sentiu um aperto no coração. Lembrou as
palavras do Vidente: as criaturas não passam de meros objectos. São os
instrumentos da nossa salvação, e é deste jeito que devem ser consideradas. Não
pensem nelas como pessoas; não são nada disto. Livrem-se de qualquer pena ou
afeição que possam porventura sentir por elas: estes sentimentos seriam meros estorvos
no cumprimento da nossa missão. Adrass recuperou o controle de si mesmo. Agora
fique em silêncio, está entendendo? Fique aqui, não se mexa e espere por mim.
Não vou demorar, está bem? A criatura anuiu molemente. Isso mesmo! Adrass não
conteve um sorriso. Não saia daqui por nenhum motivo. Fechou então a porta de
tijolos e ficou ali, parado, por alguns instantes. Não se ouvia qualquer ruído.
Talvez a criatura tivesse compreendido. Concedeu-se alguns momentos de
descanso. Já podia morrer em paz, agora. Quem sabe aquele ser patético que
jazia do outro lado pudesse de facto salvá-los todos. De qualquer maneira, ele
tinha cumprido com o seu dever. Fez todo o caminho de volta. O homem de preto
não se deteve diante de coisa alguma. Já fazia um bom tempo que não se
entregava a tamanha fúria, desde aquele longínquo dia em que fora capturado e
travara conhecimento com Kriss. A sensação do próprio corpo que se movimentava
com precisão, o leve entorpecimento dos músculos sob tensão, o cheiro de
sangue..., era algo que o inebriava, que lhe dava prazer. Matou todos, ndistintamente.
Os soldados e os mandatários, os jovens e os velhos, e as moças, principalmente
as moças. Afinal de contas, tinha vindo por causa delas. Pobres coisinhas nas
mãos daqueles bruxos insanos. Por um momento chegou até a pensar que estava
lhes fazendo um favor. Aqui está o mundo que você ajudou a criar, Mestre.
Talvez você estivesse certo, naquele dia, quando decidiu ir embora e
repudiá-lo. Em seguida derrubou a derradeira porta. Ele estava lá. Segurando
antigos livros e pergaminhos. Seus dedos tremiam. O Vidente, o chefe daquele grupo
de loucos. O homem de preto avançou devagar. Atrás dele, a sua espada deixava
um rasto de sangue. Um só homem?, disse o Vidente, incrédulo. Só um, respondeu
ele, com um sinistro sorriso. O Vidente deu um passo para trás, encostando-se
na parede. Quem o mandou? Ninguém. E mesmo que lhe contasse quem é o meu
soberano, você não saberia de quem estou falando. O Vidente ficou por alguns
instantes calado. Nós estamos salvando o Mundo Emerso, será que não se dão
conta disto? Continuam prestando atenção nos delírios daquela velha doida? Sem
nós só haverá o caos, a morte! Não dou a mínima para o caos e a morte. E menos
ainda para a salvação do mundo. Apesar da máscara que lhe ocultava o rosto, o
homem de preto percebeu todo o desespero do Vidente. Você não passa de um
louco. Pode ser. Um só golpe de espada, e o Vidente tombou no chão. A
Congregação dos Vigias tinha deixado de existir.
O
despertar
Calor.
Alguma coisa que espeta nas costas, algo húmido. Um universo vermelho todo ao
redor, e dor, por toda parte. Como estar sendo queimado por um fogo interior,
como se cada partícula do corpo estivesse berrando. A mão foi percebida pelo
ser, em algum lugar. Moveu lentamente os dedos e sentiu que se animavam com
ameno calor. Abriu os olhos, devagar. O vermelho foi substituído por uma
ofuscante brancura. Foi como recuperar todos os sentidos de uma só vez, como
ver-se entregue a um único caos ensurdecedor. Um zunido insistente, por toda
parte, um barulho estrídulo, descontínuo e cacarejante, e depois cheiro de
terra e de erva, e a percepção húmida do orvalho nas costas. O ser rendeu-se ao
espanto. Pestanejou algumas vezes e então, com um movimento vigoroso, conseguiu
virar-se de lado. Cada músculo do seu corpo gemeu, deixando-o sem fôlego. Pouco
a pouco, na brancura, foi-se desenhando a forma de um braço pálido, apoiado na
erva, e duas pernas magras, cândidas e delgadas, apenas encobertas por uma túnica
manchada. Onde estou? A pergunta surgiu na sua consciência, simples e terrível.
Não conseguiu encontrar uma resposta. Olhou a mão iluminada pelos raios do sol.
As cores iam vagarosamente se definindo. O rosa pálido da pele, o verde
ofuscante da relva, os ambíguos tons da roupa que vestia. Quem sou? Nenhuma
resposta. Um aperto gelado envolveu suas têmporas. Passou a mão no peito, onde
o coração marcava o tempo da sua ansiedade. Peitos, pequenos e empinados. Sou
uma mulher. A consciência disto não aliviou minimamente os seus temores. Olhou
em volta. O céu era de um azul profundo, sem sombra de nuvens. O relvado que a
cercava pareceu-lhe infinito; pontilhando a erva, as pequenas manchas brancas
de tímidas margaridas e o puro vermelho das papoilas. Ninguém à vista. Tentou
sondar as lembranças, trazer de volta à memória algum nome, um rosto, qualquer
indício que a ajudasse a entender. Nada». In Licia Troisi, O Destino de Adhara, Lendas
do Mundo Emerso, Editora Rocco, 2008, ISBN 978-858-122-046-8.
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