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A
paixão é uma arte. O amor é uma aventura
«Escrevo
nas páginas nuas deste diário para que a verdade venha a ser conhecida e a
minha sorte não fique à mercê dos rumores e mentiras que já sopram pelas ruas
de Sevilha. Quando morrer, muitos serão, estou certo, os que hão-de esforçar-se
por fazer da minha vida uma moralidade, mas vida alguma pode ser tão facilmente
compreendida ou enjeitada. Não me arriscaria a inscrever os meus segredos neste
diário não fosse o meu amigo e protector don Pedro, marquês de la Mota, a tal me
ter instigado. Objectei que nada do que escrevesse poderia ser lido enquanto
fosse vivo sem que o Tribunal do Santo Ofício (maldito) me condenasse à
fogueira. Ontem ainda o inquisidor em pessoa marcou a fogo semelhante perigo na
minha imaginação. Terá sido porventura tão recente ameaça, ou o ultimato do rei,
que enfim me moveu a pegar na pena e a embebê-la na tinta que ora dá forma a
estas palavras. Insistiu o marquês em que é para bem da posteridade que devo escrever
um diário, pois que a imoralidade verdadeira é nossa reputação. Mal seria,
porém, apenas por vaidade que haveria de o escrever. Trinta e seis anos são
passados desde o meu nascimento, ou, mais precisamente, desde que a minha mãe me
expôs, envolto em faixas, no celeiro do Convento de la Madre Sagrada. É decerto
sinal da idade ter permitido, pela primeira vez na vida, que me persuadissem a
considerar de que maneira serei lembrado. Outro desejo, entretanto, me leva de
igual modo a escrever: o de legar o que aprendi sobre as artes da paixão e a
santidade da mulher. Visto que renunciei ao matrimónio e não tenho herdeiros de
meu sangue, forçoso me é olhar para quantos vierem depois de mim como meus
descendentes e tentar partilhar com eles quanto aprendi junto das mulheres que
tive o privilégio de tão bem conhecer.
As
recordações de um homem inclinam-se sempre para o louvor de si mesmo, por isso
não irei valer-me somente do meu próprio testemunho mas transcrever, com roda a
fidelidade possível, não apenas os casos mas também as palavras bradadas
durante um duelo ou sussurradas durante um encontro apaixonado. É o sobredito
orgulho que me leva a principiar o meu relato pelo mais ousado feito de sedução
que jamais empreendi. Era minha ambição nada menos que libertar da sua
clausura, no Alcázar, a casta e solitária filha do rei, por uma noite. Sabia
que, sendo descoberto, teria o privilégio, na minha qualidade de homem nobre,
de pousar a cabeça no cepo do carrasco e escapar dessa forma à desonra da
forca. A ambição de um homem, todavia, como o seu destino, nem sempre é dele
conhecida antes do tempo, e, ao deixar os braços da viúva Elvira, não tinha o
menor augúrio dos riscos que, a noite passada, sobre mim pesavam.
Mais
um beijo, rogou Elvira, puxando com brandura pela manga do meu gibão
castanho-avermelhado, enquanto lestamente eu tratava de me vestir. Estava atrasado,
não obstante ter sido avisado pelo marquês de que a minha vida dependia de
estar presente na audiência do rei. A minha intenção de comparecer a tempo não
podia ter sido mais firme, mas cedera ao descobrir que a jovem mulher que ontem
à tarde tinha nos braços enviuvara por culpa do oceano. A sua solidão e o seu
desejo não tinham conhecido refrigério nos longos cinco anos passados sobre a
morre do marido. Só mais um, insistiu, agora com os lábios estendidos na
direcção dos meus. Olhei o seu rosto sorridente e os seus negros cabelos, que o
nosso desejo de há pouco deixara em desalinho. A limpidez dos seus olhos
castanhos reflectia a chama das velas que cingiam o altar do leito. Como
recusar semelhante pedido? Tomei-lhe as faces nas pontas dos dedos e
aproximei-me, chegando-me ao seu rosto devagar, pois que tudo vai do antegosto.
Rocei de leve os meus lábios nos seus e de seguida titilei com a ponta da
língua o canto da sua boca. Tive o cuidado de a não sufocar de beijos para que
não tivesse de se guardar do meu assalto. Provei-lhe o néctar orvalhado da boca
quando me abriu as suas pétalas. Unidas as bocas, era palpável a sua sede,
intenso o seu arquejar. Com as nossas línguas e lábios, bebemos um do outro uma
poção doce como o mel. Quando, ao cabo de longo tempo, me afastei, Elvira
levitava, de olhos cerrados, porém com a sede mitigada». In Douglas Carlton Abrams, O
Diário Perdido de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-233-768-7.
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