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O
Mosteiro dos Enganos
«(…)
O mercador abanou a cabeça: de maneira nenhuma, já tínhamos acabado. Com um
suspiro contrariado, Rainerio apoiou as mãos nos braços da cadeira e pôs-se de
pé. Convidando-os a saírem, virou-se para o monge e perguntou: vindes almoçar
connosco, padre Gualimberto? Infelizmente não… Continuo a sentir aqueles
insuportáveis ardores no estômago. Peço-vos licença para ficar no scriptorium até à hora nona, se
possível. Concedida. E vós, Ignazio, acompanhais-me ao refeitório? Antes de
responder, o mercador trocou um olhar de cumplicidade com Gualimberto. Eu
também não estou com muito apetite, reverendo abade. Acho que vou aproveitar a
ocasião para pedir ao padre Gualimberto que me mostre a biblioteca, caso isso
não o incomode. Será uma honra, interveio o monge. Se o abade o permitir, naturalmente.
Placet, proferiu Rainerio, ainda
antes de sair da sala. Depois de terem ficado a sós, Ignazio e Gualimberto
foram até ao andar de cima do Castrum Abbatis, onde se encontrava a biblioteca.
Antes de entrarem ficaram à conversa mais ou menos perto de uma janela para
gozarem o fresco que vinha de fora. Gualimberto continuava a lamentar-se das
suas dores de estômago, que ao que parecia o atormentavam há já uns meses, e
Ignazio ouvia-o com paciência. Tinha gosto na sua companhia e sobretudo
estava-lhe grato por lhe ter oferecido um pretexto para se livrar de Rainerio.
Várias coisas naquele monge lhe aguçavam a curiosidade. Mas a dada altura, debruçando-se
um pouco na janela, uma cena prendeu a sua atenção uma vez mais: Hulco e
Ginesio conversavam perto da hospedaria e pareciam muito agitados. Tramavam
qualquer coisa, disso estava certo. Ignazio não tardou em tirar as suas
conclusões. Arguto, virou-se para Gualimberto, dizendo: reverendo padre, eu
tenho o remédio para a vossa úlcera de estômago. Falais a sério? Basta preparar
uma decocção com certas raízes. E sabeis quais? São raras, mas possuo algumas.
Tenho-as no meu quarto. Se tiverdes a paciência de esperar por mim, ficarei
feliz por poder dar-vo-las. Gualimberto murmurou: que gentileza. Mas peço-vos
um favor, prosseguiu Ignazio, continuando a espreitar pela janela. Podeis indicar-me
uma saída secundária? Para justificar o pedido, apontou para os mendigos
agrupados à entrada. Vedes aqueles mendigos lá em cima? Interpelaram-me à
entrada e não quero correr o risco de ter um novo incidente se voltar a passar
por eles. O bibliotecário concordou e levou-o por um braço. Vinde, que eu abro
caminho, disse. O Castrum Abbatis tem também uma porta para as traseiras.
Hulco
andara toda a manhã a bisbilhotar em frente da hospedaria, lançando olhares
furtivos na direcção do edifício. De vez em quando, Ginesio, que estava lá
dentro, deitava a cabeça de fora da janela e retribuía gesticulando como um
mimo. Passara cerca de uma hora desde que o mercador de Toledo saíra do quarto.
Hulco mantivera-o debaixo de olho, fingindo remover o feno dos estábulos com
uma forquilha. E vira-o dirigir-se para o Castrum Abbatis. Era tempo de agir.
Limpou os pés e os joelhos do estrume e dirigiu-se à pressa para a hospedaria.
Ginesio abriu-lhe a porta fazendo-o desaparecer no interior. Que fazes tu aqui?,
perguntou, fechando a porta. Não podes entrar assim! O louro ainda está no
quarto. Não o vi descer. Vi-o eu, ao nascer do dia. Mas desapareceu, balbuciou
Hulco. Reparei nele, por acaso, quando levava o peixe para os armazéns. Escondeu-se
por detrás de um silvado e depois correu na direcção do canal. Segui-o pelo
canto do olho. Ginesio estava titubeante. Agora não podes entrar, é quase hora
do almoço! O hispânico vai sair do edifício a qualquer momento. Podia voltar a
entrar aqui. Verás que o abade o vai convidar para ficar na mesa dele, como ontem
ao jantar. Talvez, mas desta vez não podes falhar. Tens de procurar bem debaixo
das camas, as tábuas movem-se. É possível que tenha escondido o baú debaixo do
soalho. E porque não foste tu lá? Os trabalhos sujos ficam sempre para mim! Não
posso comprometer-me, sou o responsável aqui dentro. Ginesio fez uma pausa. Ele
disse que tens de ser tu. A estas palavras, Hulco sentiu um ligeiro
sobressalto. Então tenho de fazer o que ele manda». In Marcello Simoni, O Mercador de
Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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