sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A Flor e a Foice. Rentes de Carvalho. «Mais tarde, professores doutro quilate guiaram-me numa visão menos mitológica da História nacional. Mesmo assim, porém, limitados pelo que lhes ditava o programa oficial ou pelo controle estrito do reitor»

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«(…) Alguns feitos eram mencionados como dignos de pasmo, outros dados em exemplo. Um infante, feito prisioneiro pelos sarracenos, tinha morrido em cheiro de santidade. Uma rainha Isabel, a quem o marido acidamente censurara o tamanho das esmolas, adquirira do Alto o poder de transformar os pães em rosas, escapando assim à cólera do soberano, quando este a apanhava em flagrante delito de prodigalidade. Outro rei, Pedro, o Cru, mandara vingar o assassinato da amante, a que depois de morta foi rainha, ordenando que o coração dos assassinos lhes fosse arrancado pelas costas e depois assado. Alguns desvairados cronistas relatam que o monarca, assistindo à aplicação da sentença, mandou trazer sal e azeite, na firme intenção de levar a antropofagia por diante. Deus deitara pessoalmente a mão aos lemes das naus de Vasco da Gama, para que este não se enganasse na rota para a Índia, e assim levasse até esses longes a fé de Cristo e a fama dos portugueses. Brincalhão também, o Altíssimo deixara que Pedro Álvares Cabral se perdesse e, enquanto o dito procurava a rota do Oriente, fez-lhe aparecer o Brasil diante das caravelas.
Mais tarde, professores doutro quilate guiaram-me numa visão menos mitológica da História nacional. Mesmo assim, porém, limitados pelo que lhes ditava o programa oficial ou pelo controle estrito do reitor, nunca ultrapassavam as barreiras. Se diminuíam a influência do Espírito Santo, também não aumentavam a dos homens sobre os acontecimentos; desse modo, batalhas, transformações, perdas, eram deitadas à conta dos espanhóis, nossos inimigos de sempre. Curiosamente, tanto os professores como os compêndios despachavam em poucas falas e poucas linhas o período que ia da proclamação da República (1910) ao princípio da ditadura de Salazar (1932). Daí em diante era o panegírico: ele salvara-nos do caos económico, ele livrara-nos da guerra, ele mortificava-se para que vivêssemos todos em paz e felicidade.
Estávamos então em princípios de 1945, a Segunda Guerra Mundial quase a acabar. Precocemente politizados, ríamos à socapa dos uniformes da Mocidade Portuguesa, que ainda tínhamos de vestir ao sábado, mas em vez da saudação fascista deixávamos descair o braço e fechávamos o punho. Os professores, alarmados com o micróbio comunista, viravam as costas e não viam o que no dia 8 de Maio desse ano nos encorajou a tomar parte no enorme cortejo com que o povo do Porto festejava, tanto o fim da Guerra, como a esperança de que as forças democráticas europeias não tardariam a libertar-nos de Salazar. Esperança perdida. Salazar governou pessoalmente até 1968 e por procuração até 25 de Abril de 1974, com a cumplicidade, o apoio e a bênção de tantos democratas e tantas democracias, que chega a ser obra de caridade não mexer nas águas lamacentas desse passado recente. Certo é que em muitos dentre nós, então adolescentes, o abalo ressentido pelo abandono em que nos deixavam os países democráticos viria a traduzir-se em radicalismo político. Desse modo não surpreende que muitos dos homens empenhados no movimento de 25 de Abril pertençam à minha geração e se situem politicamente à extrema-esquerda.
Voltando à escola e aos compêndios: os meses que se seguiram ao fim da Guerra foram, primeiro, de entusiasmo, logo depois de medo e pasmo. A filiação à Mocidade Portuguesa deixara de ser obrigatória, mas no resto a camisa-de-forças apertava à mesma, e de forma ainda mais incoerente, como convinha para alimentar um ambiente de terror e insegurança. Um professor, a quem um estágio no estrangeiro tinha transformado as ideias, tomara o hábito de jogar futebol connosco durante os intervalos e, nas aulas, reservava um quarto de hora para que cada um expusesse os seus pontos de vista sobre a língua francesa. Tão graves quebras da hierarquia pediam castigo exemplar e o homem foi demitido. Mas para que a memória se nos não apagasse, e não apagou, o reitor comunicou-nos a pena diante do acusado, levantando o dedo para assegurar que não admitia atentados à disciplina (mais bizarro será difícil encontrar; o docente em questão tinha sido leitor do Instituto da Alta Cultura na Alemanha, onde ganhara o hábito subversivo de jogar futebol com os alunos).
Íamos estudando e vivendo numa atmosfera irreal, decorando virtudes e feitos heróicos que há muito tinham deixado de nos interessar ou convencer. A História de Portugal não podia ser aquilo, nem ser assim. De facto não é. Mas para o descobrirmos foi preciso que outro professor, pedindo segredo, aconselhasse alguns de nós a lermos Oliveira Martins. Semelhante às igrejas, a biblioteca do liceu Alexandre Herculano, no Porto, era silenciosa, bafienta, guardada por um bibliotecário que, duma mesa empoleirada num estrado, vigiava o nosso vaivém. Entrava-se em pontas de pés, pediam-se-lhe os livros num sussurro, ia-se em pontas de pés esperar que ele os tirasse dos armários envidraçados. Simplesmente, nem todos os livros eram obtidos com essa facilidade. Os de Oliveira Martins e outros exigiam formalidades. Para lê-los era necessário preencher uma ficha, que era entregue ao reitor, avisava ele, na qual constava o nome do aluno, o seu número de turma, data de nascimento, filiação, morada, o título da obra, o nome do autor, o nome do professor que a aconselhara e, por baixo, a razão da leitura». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT