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Alguns feitos eram mencionados como dignos de pasmo, outros dados em exemplo. Um
infante, feito prisioneiro pelos sarracenos, tinha morrido em cheiro de
santidade. Uma rainha Isabel, a quem o marido acidamente censurara o tamanho das
esmolas, adquirira do Alto o poder de transformar os pães em rosas, escapando
assim à cólera do soberano, quando este a apanhava em flagrante delito de prodigalidade.
Outro rei, Pedro, o Cru, mandara vingar o assassinato da amante, a que depois
de morta foi rainha, ordenando que o coração dos assassinos lhes fosse arrancado
pelas costas e depois assado. Alguns desvairados cronistas relatam que o monarca,
assistindo à aplicação da sentença, mandou trazer sal e azeite, na firme intenção
de levar a antropofagia por diante. Deus deitara pessoalmente a mão aos lemes
das naus de Vasco da Gama, para que este não se enganasse na rota para a Índia,
e assim levasse até esses longes a fé de Cristo e a fama dos portugueses. Brincalhão
também, o Altíssimo deixara que Pedro Álvares Cabral se perdesse e, enquanto o dito
procurava a rota do Oriente, fez-lhe aparecer o Brasil diante das caravelas.
Mais
tarde, professores doutro quilate guiaram-me numa visão menos mitológica da História
nacional. Mesmo assim, porém, limitados pelo que lhes ditava o programa oficial
ou pelo controle estrito do reitor, nunca ultrapassavam as barreiras. Se diminuíam
a influência do Espírito Santo, também não aumentavam a dos homens sobre os
acontecimentos; desse modo, batalhas, transformações, perdas, eram deitadas à conta
dos espanhóis, nossos inimigos de sempre. Curiosamente, tanto os professores como
os compêndios despachavam em poucas falas e poucas linhas o período que ia da
proclamação da República (1910) ao princípio da ditadura de Salazar (1932). Daí
em diante era o panegírico: ele salvara-nos do caos económico, ele livrara-nos da
guerra, ele mortificava-se para que vivêssemos todos em paz e felicidade.
Estávamos
então em princípios de 1945, a Segunda Guerra Mundial quase a acabar.
Precocemente politizados, ríamos à socapa dos uniformes da Mocidade Portuguesa,
que ainda tínhamos de vestir ao sábado, mas em vez da saudação fascista deixávamos
descair o braço e fechávamos o punho. Os professores, alarmados com o micróbio comunista,
viravam as costas e não viam o que no dia 8 de Maio desse ano nos encorajou a tomar
parte no enorme cortejo com que o povo do Porto festejava, tanto o fim da
Guerra, como a esperança de que as forças democráticas europeias não tardariam a
libertar-nos de Salazar. Esperança perdida. Salazar governou pessoalmente até 1968
e por procuração até 25 de Abril de 1974, com a cumplicidade, o apoio e a
bênção de tantos democratas e tantas democracias, que chega a ser obra de
caridade não mexer nas águas lamacentas desse passado recente. Certo é que em muitos
dentre nós, então adolescentes, o abalo ressentido pelo abandono em que nos deixavam
os países democráticos viria a traduzir-se em radicalismo político. Desse modo
não surpreende que muitos dos homens empenhados no movimento de 25 de Abril pertençam
à minha geração e se situem politicamente à extrema-esquerda.
Voltando
à escola e aos compêndios: os meses que se seguiram ao fim da Guerra foram,
primeiro, de entusiasmo, logo depois de medo e pasmo. A filiação à Mocidade Portuguesa
deixara de ser obrigatória, mas no resto a camisa-de-forças apertava à mesma, e
de forma ainda mais incoerente, como convinha para alimentar um ambiente de terror
e insegurança. Um professor, a quem um estágio no estrangeiro tinha transformado
as ideias, tomara o hábito de jogar futebol connosco durante os intervalos e,
nas aulas, reservava um quarto de hora para que cada um expusesse os seus pontos
de vista sobre a língua francesa. Tão graves quebras da hierarquia pediam
castigo exemplar e o homem foi demitido. Mas para que a memória se nos não apagasse,
e não apagou, o reitor comunicou-nos a pena diante do acusado, levantando o dedo
para assegurar que não admitia atentados à disciplina (mais bizarro será difícil
encontrar; o docente em questão tinha sido leitor do Instituto da Alta Cultura na
Alemanha, onde ganhara o hábito subversivo de jogar futebol com os alunos).
Íamos
estudando e vivendo numa atmosfera irreal, decorando virtudes e feitos heróicos
que há muito tinham deixado de nos interessar ou convencer. A História de Portugal
não podia ser aquilo, nem ser assim. De facto não é. Mas para o descobrirmos foi
preciso que outro professor, pedindo segredo, aconselhasse alguns de nós a lermos
Oliveira Martins. Semelhante às igrejas, a biblioteca do liceu Alexandre Herculano,
no Porto, era silenciosa, bafienta, guardada por um bibliotecário que, duma mesa
empoleirada num estrado, vigiava o nosso vaivém. Entrava-se em pontas de pés, pediam-se-lhe
os livros num sussurro, ia-se em pontas de pés esperar que ele os tirasse dos
armários envidraçados. Simplesmente, nem todos os livros eram obtidos com essa facilidade.
Os de Oliveira Martins e outros exigiam formalidades. Para lê-los era necessário
preencher uma ficha, que era entregue ao reitor, avisava ele, na qual constava o
nome do aluno, o seu número de turma, data de nascimento, filiação, morada, o título
da obra, o nome do autor, o nome do professor que a aconselhara e, por baixo, a
razão da leitura». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores,
Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.
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