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«Um momento,
durante os primeiros meses que se seguiram ao 25 de Abril, houve a esperança de
que realmente alguma coisa iria mudar. O Portugal revolucionário ia ser exemplo,
um passo em frente para uma Europa nova, o país cuja sociedade garantiria a cada
cidadão um lugar digno. Mas quê? Em fins de 1975 as elites de agora são as mesmas
de ontem, acrescentadas de uns poucos que, hábeis, subindo a tempo, ocuparam um
lugar; diminuídas temporariamente da meia dúzia que, no estrangeiro,
confortavelmente, aguarda dias melhores que muito certamente voltarão. Tal como
na velha República de 1910, em que os ministros foram quinhentos, interessa ser
ministro, garantir as benesses do amanhã».
«A pergunta
data provavelmente dos netos de Adão, mas esses não dispunham das possibilidades
publicitárias do Novo Testamento, e assim nos encostamos a Pilatos quando, com ênfase,
queremos saber o que é a verdade. Com a nossa e a alheia se confecciona a História,
o curioso refogado de factos, mentiras e aparências que, segundo o interesse dominante,
levianamente muda de sabor e colorido. Neste relato, escrito entre Abril de 1974
e Outubro de 1975 (em língua neerlandesa) ninguém encontrará a Verdade, sim uma
colectânea de factos e acontecimentos, uma ou outra profecia e os comentários que
a mudança, mais radical na aparência que na realidade, me levaram então a fazer.
Por se destinar apenas ao público holandês que, nas palavras de um crítico, sabia
então assustadoramente pouco de Portugal, inclui-se um resumo histórico que ao leitor
português poderá parecer supérfluo. Todavia, se nunca os leu, talvez isso o
leve a proveitosamente tomar conhecimento da História de Portugal e do Portugal
Contemporâneo, de Oliveira Martins, e a admirar-se, como eu em permanência me admiro,
que desde há tantos séculos sejam diminutas as mudanças de atitude do bom povo
português em relação à res publica
e aos que a tratam como coisa sua.
Numa
tarde de Setembro de 1968, uma cadeira quebrada terminava a carreira política de
Salazar. Todavia, durante os vinte e três meses seguintes, a Morte, ironicamente,
fez-se esperar, enquanto os jornais publicavam boletins dum optimismo tétrico: o
Presidente Salazar urinou. O Presidente Salazar já é capaz de escrever o seu
nome. O Diário de Notícias, lembrado de como antes se homenageavam os reis, dera-lhe
um cognome: O Grande Ausente. E durante esses vinte e três meses ninguém ousou
dizer-lhe que já não reinava. O presidente da República, Caetano, os ministros,
visitavam-no diariamente, punham em cena reuniões ilusórias, pediam a sua opinião,
fingiam anotar os seus conselhos, seguir os seus mandos, mas não tinham coragem
de lhe contar a verdade.
A História
a cores
Por volta
de 1935, ao entrar na escola, o salazarismo esperava por mim com uma visão imperial
do tamanho do país. Sobrepondo a área das colónias ao mapa da Europa, Portugal
era uma mancha que se estendia do Atlântico até para lá de Moscovo. Enquando a professora
afirmava, com indiscutível autoridade, o nosso país tem tudo, ou Salazar é a Grande
Luz, eu e os outros, tenros de idade, facilmente impressionáveis, sentíamos uma
satisfação igual à que sentem os ricos e os protegidos. Por sobre essa grandeza
do tamanho havia a da História. Portugal nascera do conselho que Deus, em boa
disposição, dera num dia de 1139 a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde então,
cada vez que, por descuido ou boa-fé, o país se encontrava à beira do desastre,
a intervenção divina nunca se tinha feito esperar, o Senhor aparecendo
pessoalmente aos reis ou, como em 1917, delegando Nossa Senhora de Fátima para
proteger Portugal, e através dele o Mundo, contra o dragão comunista. Logo a seguir
às de Deus, a História narrava as façanhas dos heróis. Da maior parte esqueci o
nome, mas ficaram que sobram: o que se deixou esmagar pelas portas dum castelo
para que os companheiros, aproveitando a abertura assim feita, o pudessem tomar
aos mouros. Outro, a quem numa batalha o inimigo tinha decepado os braços,
segurara a bandeira com os dentes, dando a que os camaradas, acudindo, pusessem
a salvo o símbolo sagrado. Um terceiro, a quem os espanhóis incitavam a que
traísse, optara pela alternativa de ser frito em azeite». In J. Rentes de Carvalho,
Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN
978-989-722-146-0.
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