sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A Flor e a Foice. Rentes de Carvalho. «A pergunta data provavelmente dos netos de Adão, mas esses não dispunham das possibilidades publicitárias do Novo Testamento, e assim nos encostamos a Pilatos…»

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«Um momento, durante os primeiros meses que se seguiram ao 25 de Abril, houve a esperança de que realmente alguma coisa iria mudar. O Portugal revolucionário ia ser exemplo, um passo em frente para uma Europa nova, o país cuja sociedade garantiria a cada cidadão um lugar digno. Mas quê? Em fins de 1975 as elites de agora são as mesmas de ontem, acrescentadas de uns poucos que, hábeis, subindo a tempo, ocuparam um lugar; diminuídas temporariamente da meia dúzia que, no estrangeiro, confortavelmente, aguarda dias melhores que muito certamente voltarão. Tal como na velha República de 1910, em que os ministros foram quinhentos, interessa ser ministro, garantir as benesses do amanhã».

«A pergunta data provavelmente dos netos de Adão, mas esses não dispunham das possibilidades publicitárias do Novo Testamento, e assim nos encostamos a Pilatos quando, com ênfase, queremos saber o que é a verdade. Com a nossa e a alheia se confecciona a História, o curioso refogado de factos, mentiras e aparências que, segundo o interesse dominante, levianamente muda de sabor e colorido. Neste relato, escrito entre Abril de 1974 e Outubro de 1975 (em língua neerlandesa) ninguém encontrará a Verdade, sim uma colectânea de factos e acontecimentos, uma ou outra profecia e os comentários que a mudança, mais radical na aparência que na realidade, me levaram então a fazer. Por se destinar apenas ao público holandês que, nas palavras de um crítico, sabia então assustadoramente pouco de Portugal, inclui-se um resumo histórico que ao leitor português poderá parecer supérfluo. Todavia, se nunca os leu, talvez isso o leve a proveitosamente tomar conhecimento da História de Portugal e do Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, e a admirar-se, como eu em permanência me admiro, que desde há tantos séculos sejam diminutas as mudanças de atitude do bom povo português em relação à res publica e aos que a tratam como coisa sua.
Numa tarde de Setembro de 1968, uma cadeira quebrada terminava a carreira política de Salazar. Todavia, durante os vinte e três meses seguintes, a Morte, ironicamente, fez-se esperar, enquanto os jornais publicavam boletins dum optimismo tétrico: o Presidente Salazar urinou. O Presidente Salazar já é capaz de escrever o seu nome. O Diário de Notícias, lembrado de como antes se homenageavam os reis, dera-lhe um cognome: O Grande Ausente. E durante esses vinte e três meses ninguém ousou dizer-lhe que já não reinava. O presidente da República, Caetano, os ministros, visitavam-no diariamente, punham em cena reuniões ilusórias, pediam a sua opinião, fingiam anotar os seus conselhos, seguir os seus mandos, mas não tinham coragem de lhe contar a verdade.

A História a cores
Por volta de 1935, ao entrar na escola, o salazarismo esperava por mim com uma visão imperial do tamanho do país. Sobrepondo a área das colónias ao mapa da Europa, Portugal era uma mancha que se estendia do Atlântico até para lá de Moscovo. Enquando a professora afirmava, com indiscutível autoridade, o nosso país tem tudo, ou Salazar é a Grande Luz, eu e os outros, tenros de idade, facilmente impressionáveis, sentíamos uma satisfação igual à que sentem os ricos e os protegidos. Por sobre essa grandeza do tamanho havia a da História. Portugal nascera do conselho que Deus, em boa disposição, dera num dia de 1139 a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde então, cada vez que, por descuido ou boa-fé, o país se encontrava à beira do desastre, a intervenção divina nunca se tinha feito esperar, o Senhor aparecendo pessoalmente aos reis ou, como em 1917, delegando Nossa Senhora de Fátima para proteger Portugal, e através dele o Mundo, contra o dragão comunista. Logo a seguir às de Deus, a História narrava as façanhas dos heróis. Da maior parte esqueci o nome, mas ficaram que sobram: o que se deixou esmagar pelas portas dum castelo para que os companheiros, aproveitando a abertura assim feita, o pudessem tomar aos mouros. Outro, a quem numa batalha o inimigo tinha decepado os braços, segurara a bandeira com os dentes, dando a que os camaradas, acudindo, pusessem a salvo o símbolo sagrado. Um terceiro, a quem os espanhóis incitavam a que traísse, optara pela alternativa de ser frito em azeite». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT