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«(…) Se visse a roupa que tinha e a quantidade de sapatos. Nisto, era muito
exigente. Queria as calças bem vincadas, as camisas sem a mais pequena nódoa,
os sapatos sempre lustrosos. Mas não berrava. Dizia o que queria. na sua
amabilidade, e não era necessário repetir. Todos se esforçavam para lhe
satisfazer os gostos. Mais baixinho. em coro, acrescentavam: o menino era uma
jóia ao contrário dos outros. As senhoras, de língua afiada, impertinentes, sempre
a descobrir e apontar defeitos. Todas umas preguiçosas que até obrigavam as
criadas a deixarem as suas tarefas, para erguer do chão um lenço, caído aos pés
delas. E o patrão movia-se nas mesmas águas, desabrido nas suas ordens que
queria cumpridas rigorosamente, sob pena de violenta censura ou sumário despedimento.
A-Leng, já refeita do abalo, estava agora cheia de curiosidade. Até se
esquecera doutras encomendas de água. Fazia perguntas, aceitava a lengalenga,
sem desconto dos exageros. por qualquer prevenção íntima, não revelou que o
Menino a sequestrava. Bebeu duas tigelas de chá, em vez duma, e comeu uma fatia
de bolo, feito
na véspera, que a senhora distribuíra às criadas. Quando saiu, ia, de
facto, abalada. O conceito sobre o homem até então perverso, modificara-se. Não
confiou em ninguém a aventura vivida. Nem a Abelha-Mestra a quem solicitava
conselhos e advertências. As amigas à noite estranharam. Não costumava ter
aquele ar ausente, o pensamento muito longe. Não se intrometia nas conversas,
num silêncio distraído. Durante a noite inteira, a imagem do rapaz não a
largou. Isto desesperou-a, porque estava mesmo a pensar demasiado nele, no
tratamento gentilíssimo de siu-tché e no facto de deixá-la entrar
primeiro através da porta. Com outro tipo de cara, não era nada feio, ao contrário
do que a princípio achara.
À hora de levar a água da fonte, para a casa dele, enervara-se toda. O
que sucederia nesse dia? Nada e teve uma desilusão. Não o viu, durante três
dias. Guardou admirada outras tantas decepções. Ter-se-ia arrependido de
conhecê-la, agora que era a aguadeira da casa? Temeria que ela fizesse alguma
queixa? Mas se queixa houvesse, seria logo no primeiro dia. O que não
adivinhava era que tudo fora planeado. Adozindo, com notável paciência queria
que meditasse nele. No quarto dia, tivera um dia cansativo. Por mais que se
empenhasse não chegaria à hora precisa, na casa do rapaz. Caminhava a passo
regular, o corpo teso, as ancas a bambolear, ao ritmo pendular dos baldes. Nas
axilas e nas costas, grandes manchas de suor. Na franja das calças e nos pés
nus, lama. A única coisa limpa e apresentável, a trança negra, o seu
incontestável orgulho. No cruzamento de duas ruas estreitas, parou, na sombra
precária, para tomar alento. O sol de Junho refulgia implacável. Esfregou o rosto
suarento, com o lenço pendurado na abertura da cabaia, junto à anca, devassando
as artérias. Uma voz soou atrás. Boa-tarde. Estremeceu. Afinal, não a
esquecera. Ele ali estava asseado, a camisa muito alva, o rosto cheirando a
perfume que mais tarde aprendeu ser água de Colónia. Na mão direita, sangravam duas
rosas aveludadas. O bem-estar dele era flagrante. Ela teve, pela primeira vez,
a dolorosa noção de que estava suja, coberta de poeira, o corpo emanando a suor.
Oferecendo as rosas, Adozindo disse: toma. Colhia-as para ti. São do meu
jardim. Não posso aceitar. Tenho as mãos ocupadas. Queres que as deite fora?
Não. São muito bonitas». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira,
Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.
Cortesia da
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