jdact
e wikipedia
O
ourives do rei
«Estava-se
a 10 de Julho do ano da graça de 1540; eram quatro horas da tarde, em Paris,
cerca da Universidade, à entrada da Igreja dos Agostinhos, perto da pia da água
benta, junto à porta. Um jovem alto e bem parecido, moreno, de cabelo comprido
e grandes olhos negros, trajando com a mais distinta simplicidade, e trazendo
por única arma um pequeno punhal de punho primorosamente cinzelado, ali estava,
de pé; e, decerto por piedosa humildade, não se tinha movido em todo o tempo
que durou o ofício de vésperas; de cabeça inclinada e em atitude de devota contemplação,
murmurava não sei que palavras em surdina; talvez as suas orações, pois falava
tão baixo que só Deus e ele podiam saber o que dizia; contudo, ao terminar o
ofício divino, reergueu a cabeça, e os seus vizinhos mais próximos puderam
ouvir estas palavras pronunciadas a meia voz: que maneira abominável de
salmodiar têm estes frades franceses! Não poderiam cantar melhor diante dela,
que deve estar habituada a ouvir cantar os anjos? Ainda bem que as vésperas terminaram.
Meu Deus, Meu Deus! Fazei que seja hoje mais feliz que no domingo, e que ela,
pelo menos, levante os olhos para mim! Este seu desejo não é nada
inconsequente, pois se aquela a quem se refere levantar de facto os olhos para
ele, verá o mais sedutor dos rostos de adolescente que ela jamais idealizou, ao
ler as belas fábulas mitológicas tão em moda nessa época, graças às poesias de
mestre Clemente Marot, onde se descrevem os amores de Psique e a morte de
Narciso. E que o jovem, no seu traje sóbrio mas belo, era, como dissemos, de
uma irresistível sedução e de uma suprema elegância de maneiras; além disso, o
seu sorriso tinha uma graça e uma doçura infinitas, e o seu olhar, que ainda
não ousava ser audacioso, era, pelo menos, o mais apaixonado que poderiam
lançar dois grandes olhos de dezoito anos. Entretanto, ao ruído especial das
cadeiras anunciando o fim da cerimónia religiosa, o nosso enamorado, dizia eu,
pôs-se um tanto de parte para ver passar a multidão, que saía em silêncio, e se
compunha, quase exclusivamente, de severos fabriqueiros, respeitáveis matronas
e jovens graciosas. Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no
templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente,
quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia
de simpático aspecto e ainda não muito velha. Quando estas duas damas se aproximaram
da pia da água benta, o nosso jovem tomou alguma nas pontas dos dedos e
ofereceu-lha com ademane gentil. Esboçou a aia o mais gracioso sorriso, fazendo
a mais agradecida das reverências, ao tocar os dedos do jovem, mas causou-lhe a
maior das decepções ao oferecer ela própria algumas gotas da água recebida à
sua jovem ama. Esta, não obstante a fervorosa oração de que poucos minutos
antes fora objecto, manteve os seus olhos constantemente abaixados, prova
evidente de que bem sabia estar ali o nosso jovem enamorado. Experimentou com a
contrariedade tal desgosto, que não se conteve de bater o pé, murmurando: e não
foi ainda hoje que me olhou! Isto prova que o belo adolescente, tal como
julgamos tê-lo dito já, ainda não tinha mais de dezoito anos. Mas, passado o
primeiro momento de despeito, o nosso desconhecido apressou-se a descer os
degraus do templo, e, vendo que depois de ter baixado o véu e dado o braço à
sua aia, a formosa distraída tinha voltado à direita, apressou-se a fazer o
mesmo, notando aliás que era precisamente aquele o seu caminho. A jovem seguiu
ao longo do cais até à Ponte de S. Miguel, que atravessou; exactamente o
caminho do nosso desconhecido. Em seguida, a jovem meteu pela Rua Barillerie,
atravessando a Ponte Change. Ora como tudo isto era o caminho do jovem,
seguiu-a como se fora a própria sombra. A sombra de qualquer rapariga bonita é
sempre um enamorado. Mas, pouca sorte! Por alturas do Grand-Châtelet, o belo
astro, de que o nosso desconhecido se fizera satélite, eclipsou-se subitamente:
o postigo da prisão real abriu-se como por si mesmo, mal a aia lhe tocou,
voltando logo a cerrar-se sobre as duas. Por momentos, o jovem ficou interdito,
mas, como era moço decidido sempre que não houvesse uma jovem beldade a
alterar-lhe as decisões, depressa tomou o seu partido. Um sargento da guarnição,
de lança ao ombro, passava e repassava gravemente diante da porta do
Grand-Châtelet. O nosso jovem desconhecido pôs-se então a imitar aquela digna
sentinela. Depois de se ter afastado o bastante para não dar nas vistas, mas
sem perder a da porta, começou heroicamente o seu quarto de sentinela amorosa. Se
o leitor já algum dia montou uma guarda, reparou certamente que o melhor
processo para iludir o tempo é falar de si para consigo. Ora não resta a menor
dúvida que o nosso jovem estava habituado a estes quartos de sentinela, pois,
mal havia encetado esta, travou logo o seguinte diálogo consigo mesmo: evidentemente
que não é ali que ela mora. Esta manhã, depois da missa, e nos dois últimos
domingos, em que ousei apenas segui-la com os olhos, que tolo fui!, ela nunca
voltou à direita pelo cais, mas sim à esquerda e em direcção à porta de Nesle e
do Pré-aux-Clercs. Que diabo virá ela fazer aqui ao Châtelet? Vejamos, talvez
visitar um preso, quem sabe se o próprio irmão. Pobre rapariga! Como deve
sofrer, pois será tão bondosa como linda! Valha-me Deus! Como desejo falar-lhe,
para lhe perguntar francamente de que é que se trata e oferecer-lhe todo o meu
auxílio. Se for o seu irmão, confiarei o caso ao mestre e pedir-lhe-ei que me
aconselhe. Quem, como ele, já se evadiu uma vez do Castelo de Santo Ângelo,
há-de saber bem como se sai de uma prisão. Está dito, salvo-lhe o irmão.
Prestando-lhe este serviço, o irmão torna-se meu amigo para a vida e para a
morte. Perguntar-me-á, por sua vez, que poderá fazer por mim, que a tanto o
obriguei. Confessar-lhe-ei que estou enamorado de sua irmã. Apresentar-ma-á,
cairei a seus pés, e veremos então se não levanta os olhos para mim. Uma vez
entregue a tais cogitações, é fácil compreender até que ponto um coração
enamorado pode seguir, sem se deter, o seu pensamento predilecto». In Alexandre
Dumas, Ascânio, ou o Ourives do Rei, 1843, Lello Editores, 1969, ISBN
978-972-481-184-0.
Cortesia de
LEditores/JDACT