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«Suponho
que o senhor saiba isso de sobra: somos um país de mexeriqueiros. Queremos conhecer
os segredos das pessoas e, de preferência, os da cama. Por outras palavras, e perdão
pela grosseria, quem se enrola com quem e de que maneiras o fazem. Meter o nariz
na intimidade das pessoas conhecidas. Dos poderosos, dos famosos, dos importantes.
Políticos, empresários, desportistas, cantores, etc. E, se há alguém que sabe fazer
isso, digo-lhe com toda a modéstia do mundo, sou eu.
O
Sonho de Marisa
Tinha
acordado ou continuava a sonhar? Aquele calorzinho no peito do pé direito estava
sempre ali, uma sensação insólita que lhe eriçava todo o corpo e lhe revelava que
não estava sozinha na cama. As recordações surgiam em tropel na sua cabeça, mas
iam-se ordenando como palavras-cruzadas que se preenchem lentamente. Depois do almoço
tinham estado divertidas e um pouco alegres por causa do vinho, passando do terrorismo
aos filmes e aos mexericos sociais, quando, de repente, Chabela olhou para o relógio
e se pôs de pé de um salto, pálida: o toque de recolher! Meu Deus, já não me vai
dar tempo de chegar a La Rinconada! Não nos apercebemos das horas! Marisa insistira
para que ficasse a dormir com ela. Não haveria problema, Quique tinha partido para
Arequipa por causa da reunião de direcção logo de manhã cedo na fábrica de cervejas,
eram donas do apartamento do Golf. Chabela ligou para o marido, Luciano, sempre
tão compreensivo, que disse que não havia inconveniente, que ele se encarregaria
de que as duas meninas saíssem pontualmente para apanhar o autocarro do colégio.
Que Chabela ficasse mesmo em casa de Marisa, isso era preferíve1 a ser detida por
uma patrulha se infringisse o toque de recolher. Maldito toque de recolher. Mas,
claro, o terrorismo era pior.
Chabela
ficara a dormir e, agora, Marisa sentia a planta do pé dela sobre o peito do seu
pé direito: uma leve pressão, uma sensação suave, morna, delicada. Como é que tinha
acontecido estarem tão perto uma da outra naquela cama de casal tão grande que,
ao vê-la, Chabela brincara: mas, vamos lá ver, Marisita, queres-me dizer quantas
pessoas é que dormem nesta cama gigante? Lembrou-se de que ambas se tinham deitado
nos seus respetivos cantos, separadas pelo menos por meio metro de distância. Qual
delas havia deslizado tanto no sono ao ponto de o pé de Chabela estar agora poisado
sobre o peito do seu pé? Não se atrevia a mexer-se. Aguentava a respiração para
não acordar a amiga, não fosse ela retirar o pé e desaparecer aquela sensação tão
grata que, do peito do seu pé, se expandia pelo resto do corpo e a mantinha tensa
e concentrada. Pouco a pouco foi entrevendo, na escuridão do quarto, algumas ranhuras
de luz nas persianas, a sombra da cómoda, a porta do quarto de vestir, a da casa
de banho, os retângulos dos quadros das paredes, o deserto com a serpente-mulher
de Tilsa, a câmara com o totem de Szyszlo, o candeeiro de pé, a escultura de
Berrocal. Fechou os olhos e escutou: muito fraca, mas ritmada, era assim a respiração
de Chabela. Estava a dormir, talvez a sonhar, e fora ela então, sem dúvida,
quem se aproximara durante o sono do corpo da sua amiga.
Surpreendida,
envergonhada, perguntando-se de novo se estava acordada ou a sonhar, Marisa
tomou por fim consciência do que o seu corpo já sabia: estava excitada. Aquela delicada
planta do pé a aquecer-lhe o peito do pé acendera-lhe a pele e os sentidos e, de
certeza, se deslizasse uma das suas mãos por entre as coxas iria encontrá-1a molhadinha.
Estás maluca?, disse para si própria. Excitares-te com uma mulher? Como é que é
isso, Marisita? Tinha-se excitado sozinha muitas vezes, claro, e tinha-se masturbado
também às vezes, esfregando uma almofada entre as pernas, mas sempre a pensar em
homens. Que ela se recordasse, com uma mulher, jamais! No entanto, agora estava
a tremer dos pés à cabeça e com uma vontade louca de que não só os seus pés se tocassem
como também os seus corpos, e sentisse, como aquele peito do pé, por todo o lado
a proximidade e o calor morno da amiga». In Mario Vargas Llosa, Cinco Esquinas, Quetzal
Editores, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-722-288-7.
Cortesia de
QuetzalE/JDACT