sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Cinco Esquinas. Mario Vargas Llosa. «… somos um país de mexeriqueiros. Queremos conhecer os segredos das pessoas e, de preferência, os da cama. Por outras palavras, e perdão pela grosseria…»

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«Suponho que o senhor saiba isso de sobra: somos um país de mexeriqueiros. Queremos conhecer os segredos das pessoas e, de preferência, os da cama. Por outras palavras, e perdão pela grosseria, quem se enrola com quem e de que maneiras o fazem. Meter o nariz na intimidade das pessoas conhecidas. Dos poderosos, dos famosos, dos importantes. Políticos, empresários, desportistas, cantores, etc. E, se há alguém que sabe fazer isso, digo-lhe com toda a modéstia do mundo, sou eu.

O Sonho de Marisa
Tinha acordado ou continuava a sonhar? Aquele calorzinho no peito do pé direito estava sempre ali, uma sensação insólita que lhe eriçava todo o corpo e lhe revelava que não estava sozinha na cama. As recordações surgiam em tropel na sua cabeça, mas iam-se ordenando como palavras-cruzadas que se preenchem lentamente. Depois do almoço tinham estado divertidas e um pouco alegres por causa do vinho, passando do terrorismo aos filmes e aos mexericos sociais, quando, de repente, Chabela olhou para o relógio e se pôs de pé de um salto, pálida: o toque de recolher! Meu Deus, já não me vai dar tempo de chegar a La Rinconada! Não nos apercebemos das horas! Marisa insistira para que ficasse a dormir com ela. Não haveria problema, Quique tinha partido para Arequipa por causa da reunião de direcção logo de manhã cedo na fábrica de cervejas, eram donas do apartamento do Golf. Chabela ligou para o marido, Luciano, sempre tão compreensivo, que disse que não havia inconveniente, que ele se encarregaria de que as duas meninas saíssem pontualmente para apanhar o autocarro do colégio. Que Chabela ficasse mesmo em casa de Marisa, isso era preferíve1 a ser detida por uma patrulha se infringisse o toque de recolher. Maldito toque de recolher. Mas, claro, o terrorismo era pior.
Chabela ficara a dormir e, agora, Marisa sentia a planta do pé dela sobre o peito do seu pé direito: uma leve pressão, uma sensação suave, morna, delicada. Como é que tinha acontecido estarem tão perto uma da outra naquela cama de casal tão grande que, ao vê-la, Chabela brincara: mas, vamos lá ver, Marisita, queres-me dizer quantas pessoas é que dormem nesta cama gigante? Lembrou-se de que ambas se tinham deitado nos seus respetivos cantos, separadas pelo menos por meio metro de distância. Qual delas havia deslizado tanto no sono ao ponto de o pé de Chabela estar agora poisado sobre o peito do seu pé? Não se atrevia a mexer-se. Aguentava a respiração para não acordar a amiga, não fosse ela retirar o pé e desaparecer aquela sensação tão grata que, do peito do seu pé, se expandia pelo resto do corpo e a mantinha tensa e concentrada. Pouco a pouco foi entrevendo, na escuridão do quarto, algumas ranhuras de luz nas persianas, a sombra da cómoda, a porta do quarto de vestir, a da casa de banho, os retângulos dos quadros das paredes, o deserto com a serpente-mulher de Tilsa, a câmara com o totem de Szyszlo, o candeeiro de pé, a escultura de Berrocal. Fechou os olhos e escutou: muito fraca, mas ritmada, era assim a respiração de Chabela. Estava a dormir, talvez a sonhar, e fora ela então, sem dúvida, quem se aproximara durante o sono do corpo da sua amiga.
Surpreendida, envergonhada, perguntando-se de novo se estava acordada ou a sonhar, Marisa tomou por fim consciência do que o seu corpo já sabia: estava excitada. Aquela delicada planta do pé a aquecer-lhe o peito do pé acendera-lhe a pele e os sentidos e, de certeza, se deslizasse uma das suas mãos por entre as coxas iria encontrá-1a molhadinha. Estás maluca?, disse para si própria. Excitares-te com uma mulher? Como é que é isso, Marisita? Tinha-se excitado sozinha muitas vezes, claro, e tinha-se masturbado também às vezes, esfregando uma almofada entre as pernas, mas sempre a pensar em homens. Que ela se recordasse, com uma mulher, jamais! No entanto, agora estava a tremer dos pés à cabeça e com uma vontade louca de que não só os seus pés se tocassem como também os seus corpos, e sentisse, como aquele peito do pé, por todo o lado a proximidade e o calor morno da amiga». In Mario Vargas Llosa, Cinco Esquinas, Quetzal Editores, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-722-288-7.

Cortesia de QuetzalE/JDACT