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«(…)
Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?... Deixa-me trabalhar. Sossega. Nem
na cova! Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se: pai,
não se aflija. Eu não, filha, eu não. Aquilo é génio, coitada, tem razão, tem
sofrido muito. Vai tu também prá cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com
a escrita. Boa noite. Sozinho, o Gêbo cismava muito tempo, olhando a luz.
Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... E vão
cinco, e vão sete... noves fora nada..., até que a vista se lhe toldava, e a
desoras, embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando: não posso! Não
posso mais! E tinha uma letra tão linda! Na própria desgraça caem por vezes
resquícios do sol. Houve tempo em que respiraram. Tinham-lhe dado escritas, mas
faltava a luz dos olhos, e a vida de expedientes tornara mais aziaga.
Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério a esse homem gordo e chorão, que
vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo, a sorte da filha.
Quase
sempre ao deitar falavam da filha. É o que nos vale, a nossa filhinha, Sempre
nos dá mais ânimo. É tão boa, tão nossa amiga!... A velha trabalhava, ruminava
projectos desconexos para enriquecerem; a roupa andava defendida e cuidada até
às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para poupar, sobretudo ela que
tudo guardava para o Gêbo e para a filha. Ó homem, mas então?, toda a gente se
arranja e tu estás sempre na cepa torta! Deixa estar, mulher! As coisas não vão
como tu pensas. Ora não vão, não vão!... Era ela afinal que o empurrava, àquele
ser gordo e inútil. Fortalecia-o. Por vossa causa é que eu luto, dizia ele
sempre. Não posso mais!
E
não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até
aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar... Os pobres
contentam-se com pouco, tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem
esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gêbo, que
não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele queria era dormir, dormir
aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros não lhe consentiam, debatiam-se
ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até
cair por terra, exausta, exigindo-lhe todos os dias uma mentira para alimentar
o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida
imaginária. Então?..., interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gêbo já não
sabia. O Gêbo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias
tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola.
Aquele homem gordo, ao chegar a casa, procurava o dinheiro no bolso e algum
resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: então?
Então... Nada, nada... Mas mente! Ao menos dizia o silêncio, diziam os olhos
ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser atarantado,
cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima. Então, nada!
Então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e
quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitectarem uma
mentira, como friorentos à procura de lume!...
No
seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se.
O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de
ilusão. Ela dá à tarde o Gêbo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes
falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo,
menos a faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as mãos sobre o castão
da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala
sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao facto de todos os
negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já
tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma
indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os
planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e
sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: tem a
especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles
sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta,
combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-se uns aos
outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o
sonho escondido e inútil. Só o Gêbo não pode mais e olha-os num mudo espanto. Oh,
como eu sou feliz!..., exclamava um deles. Agora tenho aí um lugar... Nem
sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros: cuido que está cada vez
pior. Um homem que teve um crédito na praça! Tem a fome à porta. Coitado! Eu
agora é que trago entre as mãos um negócio... Vivem iludidos e tombam no
sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E não têm porventura
razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa empresa, a Morte?» In Iba
Mendes, Contos Portugueses, I volume, Livro 239, Projecto Livro Livre, Raul
Brandão, 2014, Poeteiro Editor Digital.
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