jdact
«(…)
Não são as palavras que distorcem o mundo, é o medo e a vontade. As palavras são
corpos transparentes, à espera de uma cor. O medo é a lembrança de uma dor do passado.
A vontade é a crença num sonho do futuro. Não são as palavras que distorcem o
mundo, é a maneira como entendemos o tempo, somos nós».
«Eu também
passava horas nesse jogo das pedrinhas. Procurava meia dúzia de pedras de bom tamanho,
não muito grandes, mais ou menos polidas. Eu gostava de fazer esse jogo na rua,
à porta da casa da minha mãe, da tua avó. Teria a mesma idade dessa menina, uns
nove ou dez anos. Juntava as pedras na mão e lançava-as com a força certa para
rebolarem pouco; a seguir, escolhia uma, atirava-a ao ar e, nesse arco, olhando
para dois lados, apanhava uma das pedras espalhadas e ainda tinha tempo de
receber a que caía. A tua tia era mestra, não faltavam vezes em que, com cinco pedras
na mão, recolhia a última. Eu não tinha esse jeito, sempre fui de mãos
pequenas. Mas deixa, sei que isso não te interessa, tens outras preferências. Se
quisesses saber, há muito que podias ter reparado nas minhas mãos; afinal, foi com
elas que te dei tudo desde que nasceste.
Neste
tempo, esta 1uz. Só falta uma pedrinha. Lúcia tem as sobrancelhas
compenetradas, aperta. os lábios, ajeita as pedras que tem na palma da mão, os dedos
a rodearem-nas, enche o peito e atira uma a boa altura. Há o momento em que
esgravata a terra com a ponta das unhas para recolher a última pedra. Mas a outra
caiu demasiado depressa, tropeçou no caminho. Lúcia não conseguiu apanhá-la. Tem
de começar de novo.
Duvido
que sejas capaz de me imaginar com dez anos. Já fui nova, sabias? Quando nasceste,
em Setembro, eu tinha trinta e dois anos feitos em Junho. Talvez consigas suspeitar
o que foi para mim ter-te com trinta e dois anos, até acredito nisso. Lembro-me
de estares na minha barriga, nos últimos meses era um barrigão, mas tu não és capaz
de me imaginar com dez anos, duvido. Não sou essa menina que imaginas quando
tentas imaginar-me com dez anos. Fui uma menina que nunca conhecerás.
É agora.
Lúcia apanhou uma pedra, duas, três, quatro, cinco. Falta só a última. Atira-a ao
ar. Onde está a pedrinha que falta? Por um instante, desaparece na terra. Volta
a aparecer logo a seguir, mas é demasiado tarde, já a outra está muito perto,
transportando as suas arestas, fechando a sua queda: um golpe seco na terra, e rebola
para onde fica esquecida. Com paciência, gestos demorados, Lúcia pousa as pedras
que tem na mão e, entre o indicador e o polegar, segura na última, ergue-a da terra,
levanta-a à altura dos olhos. O rosto da menina contempla um mistério. És muito malandra, pedra. Porque não deixas
que ganhe? Desculpa, foi sem querer. Preferes que escolha outra pedra e te deixe
descansada? Não é isso.
O que
estás tu a fazer, rapariga? Quando a mãe assoma assim à porta do quintal e larga
esse grito, não é porque se interesse pela resposta. Lúcia põe-se de pé, dá um salto
que assusta as galinhas e perturba a luz. As pedras ficam sozinhas na terra lisa.
Lúcia tem a impressão de que atravessa o quintal durante as palavras da mãe, dentro
delas. Ainda as escuta. O que estás tu a fazer, rapariga? E já está parada diante
da mãe, o lenço desacertado pela corrida, três fiadas de cabelo coladas à testa
com pó, o olhar baixo, as mãos juntas sobre a saia. Pensas que a vida é só brincadeira?
Tu pensas que a vida é só brincadeira? Voz áspera, e apesar de se baixar para lhe
procurar os olhos, apesar de repetir a pergunta, não quer saber da resposta. Desinteressa-se,
vira-lhe as costas. Vai lá ver se as galinhas puseram algum ovo.
Todos
os momentos existem. Lúcia, dez anos, menina que caminha pelo quintal escuro.
São os seus olhos que iluminam o presságio de cada passo. Lúcia sabe exactamente
onde as galinhas se abaixam. Encontra-as recolhidas nos seus ninhos, enfia-lhes
a mão delgada entre a palha e aquele morno onde as penas são mais maviosas. Encontra
o único ovo na última galinha. Perdoa-me. Porque demoraste tanto tempo? A mãe recebe
o ovo para o escalfar na sopa e não quer mais conversa ou pensamentos. Mas Carolina
já chegou». In José Luís Peixoto, Em Teu Ventre, Quetzal Editores, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-722-257-3.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT