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Mas, entre os excessos do Larau e as apreensões do padre Alberto, ninguém sabia
com clareza o que se estava a passar em Lisboa, nem a situação em que se
encontrava Marcelo Caetano. E, nesse território de dúvidas, lançavam-se para a
mesa os mais curiosos palpites: que tinha sido assassinado logo às primeiras horas
da madrugada; que já estava morto havia vários dias; que já tinha dado à sola e
todo aquele escarcéu no Largo do Carmo era pura encenação; que os revoltosos
não sabiam o que fazer com o corpo, era sempre assim, tudo tratadinho, tudo a correr
como o previsto e, depois, vai-se a ver e ninguém sabe o que fazer com o corpo,
se exibi-lo em praça pública, se deitá-lo discretamente ao Tejo, atado a
correntes de ferro e pesos de chumbo, se queimá-lo numa fogueira, na Praça do
Comércio, uma encrenca, era o que era; que tudo não passava de bluff do próprio
Marcelo Caetano, na esperança de que o povo saísse à rua para o salvar; que, àquela
hora, já o Marcelinho estava a beber refrescos de groselha no Sul de Espanha, com
os olhos voltados para Alcácer Quibir; que tudo dependia de quem estivesse por detrás
disto, que eram soldados, que muito bem, parece que são soldados. Mas se os nossos
soldados, dizia o Fangaias e com certa razão, coitadinhos, andam por terras do Ultramar
a perder pernas, a perder braços, a perder o juízo, como é que de repente aparecem
tantos soldados? Seriam russos? Americanos? Ingleses? Franceses? E por onde é que
eles tinham entrado sem ninguém dar por nada? Por mar, respondia o Bocalinda, claro
que entraram por mar. O cabr… do mar que sempre foi e sempre será a nossa desgraça.
Mas cabe na cabeça de alguém fazer a capital de um país junto ao mar? Vaidades.
Nunca houve cabeças no filha-da-pu… deste país, rematou o Larau, colocando um ponto
final na refeição. E, já de barriguinhas consoladas, a bebericarem golinhos de
café e conhaque, a desfrutarem dos prazeres primaveris que o jardim lhes
oferecia, as incertezas continuavam a ser mais do que muitas. Mil e uma
hipóteses haviam sido avançadas. Todos os receios. Todas as esperanças, também.
Mas, entre os presentes, havia um, cuja voz ainda não se fizera ouvir: o doutor
Augusto Mendes, o mais ilustre de entre os ilustres. E foi justamente no momento
em que todos se voltavam para o distinto anfitrião, na ânsia de lhe ouvir as primeiras
palavras, que ao portão da casa apareceu, esbaforida e de credo na boca, a Ressurreição.
A Ressurreição era vizinha do Celestino. Aliás, era mais do que vizinha. Era quem
lhe tratava da roupa e da casa e das panelas de sopa. Quem se preparava para o amparar
na velhice, recebendo em troca, e apesar da diferença de idades, o afecto e o respeito
que nunca conhecera nos homens que lhe haviam enchido a casa de filhos. O que te
aconteceu?, perguntaram. E a Ressurreição, depois de recuperar o fôlego, contou
que o Celestino não viera almoçar. Que já dera a volta a tudo: da fonte salgada
até ao chão do Humberto, do lugar do Barba Ruiva até ao cemitério antigo. E que
agora, depois de lhe vasculhar a casa mais uma vez, é que dera conta de que a espingarda
também desaparecera. Porque é que o homem haveria de sair de espingarda em Abril?
Nenhum dos presentes lhe soube responder, e dividiram-se em três parelhas: doutor
Augusto Mendes e Bocalinda, padre Alberto e Adolfo, Fangaias e Larau. Traçaram uma
circunferência imaginária, com centro na casa do Celestino e raio de meia légua.
Dividiram a circunferência em três partes iguais. Dentro de cada parte, identificaram
os pontos onde, com maior probabilidade, o Celestino se poderia ter enfiado. Marcaram
encontro para dali a duas horas e fizeram-se ao caminho. Galgaram muros e
cercas. Vasculharam palheiros e currais. Subiram a montes. Treparam árvores.
Assomaram-se a poços e a noras. Encontraram pessoas. Fizeram perguntas. Seguiram
pegadas. Cartuchos. Beatas. Voltaram ao centro da circunferência. Alargaram o perímetro.
Retomaram as buscas». In João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o
Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012, ISBN 978-989-660-209-3.
Cortesia de Leya/JDACT