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Quando Amani tentou espreitar por baixo do corpo da irmã para se certificar de
que não estava lá nenhum gatinho escondido, Maha, enfurecida, bateu com o
cotovelo no rosto da irmã partindo-lhe um dente. Embora na altura aquilo não
tivesse sido nada divertido, pois Kareem e eu tivemos de explicar ao médico da
família a constrangedora natureza dos ferimentos das nossas filhas, o comentário
de Sara e a sua natureza apaziguadora constituíram o antídoto perfeito para a
raiva. Kareem e eu trocámos olhares e rimo-nos a bom rir da memória daquele
tempo longínquo em que o comportamento das nossas filhas não raro se
assemelhava ao de duas feras selvagens que andassem à solta na nossa casa.
Amani, sem pitada de humor, não aprovou as nossas gargalhadas. Afastou-se do pai,
sacudindo o vestido com a mão como se o sucedido fosse insignificante. Em seguida,
cumprimentou a tia Sara com uma troca rotineira de beijos, mudando de assunto e
inquirindo-a sobre a sua neta doente, cuja curta vida fora recentemente ameaçada
por um ataque grave de tosse convulsa. Maha, triunfante como um guerreiro conquistador,
sacudiu-se da mãe e tocou afectuosamente no ombro da tia predilecta, antes de se
servir de uma bebida fresca feita de limões acabados de espremer. Em seguida, ela
e Amani escolheram deliberadamente ocupar lados opostos da sala, representando
o papel de perfeitas desconhecidas.
Amo as
minhas duas filhas tanto quanto qualquer mãe ama a sua prole mas, mesmo adultas,
elas continuam a testar a minha paciência. Anos atrás, agarrara-me à esperança de
que a idade adulta lhes trouxesse maturidade, mas infelizmente enganei-me. Olhando
para elas, vi que ambas ostentavam uma expressão de sobranceira satisfação. Contive
um desejo intenso de lhes dar dois estalos. Enquanto fazia conversa com Sara e
Kareem, não deixava de pensar na nossa vida, perguntando-me como é que duas filhas
dos mesmos pais não conseguiam encontrar um ponto de concórdia. Desde a juventude
que as nossas filhas chocavam em todos os aspectos da nossa vida de sauditas. Maha
é uma rapariga forte e independente que desde tenra idade teve uma consciência aguda
dos constrangimentos culturais e sociais impostos às mulheres da Arábia Saudita.
Ao longo dos anos, a sua raiva inflamou-se perante as injustiças dos nossos costumes
sociais com respeito ao género; passou a detestar cada restrição e era
frequente declarar a sua determinação em testar todas elas. Amani abraçou as convicções
mais tradicionais da nossa terra, contanto que se dirigem-se às mulheres. Havia
alturas em que me parecia que Amani acreditava que os grilhões que confinavam as
mulheres não eram suficientemente fortes.
Com
o tempo, cheguei à triste conclusão de que as mulheres da Arábia Saudita estavam
mais bem governadas por clérigos que detestavam mulheres do que por uma mulher conservadora
como a minha filha. Muitas foram as vezes em que pus em causa as minhas capacidades
como mãe, perguntando-me o que desviara a minha Amani, outrora tão doce e dócil.
Após anos de episódios e ocorrências traumáticos, a tranquilidade bafejou o nosso
lar, mas só depois de Maha persuadir os pais de que nunca conheceria a verdadeira
felicidade enquanto fosse obrigada a viver na Arábia Saudita. Kareem e eu sentíamo-nos
verdadeiramente preocupados com a possibilidade de ela de facto testar cada
rigorosa lei social e tribal que versasse as mulheres, caso fosse obrigada a residir
no reino. A nossa Maha é uma rapariga audaz, intrépida e inabalável face à autoridade.
Talvez cometesse algum acto considerado culturalmente tão grave que se
levantasse um coro de reprovação da comunidade seguido de clamores para que o nosso
tio, o rei, fizesse da nossa filha um caso exemplar. Depois de muitas conversas
prolongadas, Kareem e eu diligenciámos para que Maha frequentasse uma universidade
na Europa. Para nossa felicidade, a personalidade agressiva da nossa filha aligeirou-se
consideravelmente depois de ela ir para fora. Estava tão satisfeita na Europa que
acabámos por aceitar que construiria o seu lar longe do nosso reino do deserto.
Daquela altura em diante, Maha fazia apenas raras visitas à Arábia Saudita,
embora nós a visitássemos muitas vezes». In Jean Sasson, Vítimas da Tradição, 1992,
Edições ASA, Grupo Leya, 2015, ISBN 978-989-233-039-6.
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