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«A Eternidade e o desejo, são duas coisas tão parecidas,
que ambas se retratam com a mesma figura». In António Vieira, Sermão
de Nossa Senhora do Ó
«A
noite passada sonhei que voltava à Bahia. O sol atacava a pique, e eu andava de
igreja em igreja à procura de alguém que não conseguia encontrar. Na rua a
força do sol impedia-me de ver, nas igrejas ficava atordoada com o excesso de
turistas e talha dourada. Queria gritar, mas não conseguia. Dizes-me que é uma
sensação muito comum, nos sonhos. Mas eu creio que já não posso voltar a ser
uma pessoa muito comum. Recordas-me que vou voltar a Salvador. E que vou
contigo. Vou ao teu lado, sim. Acredita que te agradeço a gentileza da
companhia. Mas tu não pertences ali. E eu tenho um bocadinho de medo de me
perder. Então peço-te que me contes tudo, Sebastião. Tudo? Mas o que é tudo?
Tudo o que vejo?, perguntas, num sussurro. Como se, de súbito, te sentisses
esmagado pela intraduzível vastidão do teu olhar. O que se vê nunca se pode
narrar com rigor. As palavras são caleidoscópios onde as coisas se transformam
noutras coisas. As palavras não têm cor, por isso permanecem quando as cores
desmaiam. Percebo o teu aturdimento: como se traduz a visão? Como se emprestam
os olhos? Impossível. Ainda por cima num aeroporto, onde tudo é movimento; o
movimento entorpece o acontecer das coisas. Conta-me só a verdade, Sebastião. O
que sobra daquilo que vês. Dizes-me que vês uma criança chorando agarrada aos
joelhos de um homem que parte. Uma mulher tenta soltar-lhe os dedos das calças
do homem, que se esforça por conter as lágrimas. Peço-te que não me contes
histórias de despedidas. Vejo-as à transparência das vozes, no recorte bruto
das frases interrompidas, entrecortadas de tristeza. Peço-te que olhes para o
que fazem as pessoas felizes, são essas que preciso de ver. Dizes-me que te
peço demasiado, que a felicidade não se vê. Enganas-te, Sebastião. Também eu já
me enganei, quando via. Olhava mas não via. Fixava-me nas lágrimas, como tu.
Somos conduzidos para as lágrimas, a civilização é provavelmente isso, um longo
trajecto de lágrimas. Como se tivéssemos medo de merecer o júbilo da terra.
Como se o conhecimento da morte nos tornasse mortos antecipados. Lembro-me de
mim criança. Recorro muito à criança que fui, convoco as memórias da primeira
infância, é esse o meu antidepressivo. Não havia entre mim e o mundo qualquer
conflito, e tudo o que sabia me bastava. Dizes-me que tenho sorte; não
conseguiste guardar uma memória nítida dos teus primeiros anos. Contam-te
histórias que se passaram contigo, e é como se não tivesses estado lá. O que
mais recordas da infância é o tédio: repetias incessantemente à tua mãe que não
tinhas nada para fazer. Ela retorquia-te que aproveitasses as vantagens de
viver num mundo onde já estava tudo feito, e depois mandava-te escolher
brinquedos bons para levar aos meninos que não tinham nada. E tu não eras capaz
de escolher, todos os brinquedos com que te esqueceras de brincar te faziam
falta, de repente. Incapaz de te obrigar a escolher, escolhia ela os
brinquedos, ia contigo a um orfanato qualquer. E tu vinhas de lá a chorar, com
pena de ti mesmo e dos meninos órfãos, sem brinquedos. Na realidade, dizes
agora, tinha mais pena de mim do que deles. Então a tua mãe abraçava-te e
beijava-te, extasiada com o teu bom coração, dizia: meu amor, tão sensível, o
meu amor pequenino, e tu sentias-te um mentiroso egoísta. Rio-me, pensas que me
rio de ti, já não me rio de ninguém, Sebastião, rio-me porque preciso de
arrefecer as palavras, preciso de as adequar à temperatura do meu corpo, rio-me
muito mais agora do que quando via, porque quando via as palavras eram só mais
um sinal, um piano numa orquestra. Rio-me até mais do que nunca, Sebastião,
porque a escala dos sorrisos se me tornou inacessível.
(Forro
o espaço de palavras para neutralizar o impacto. A consciência em implosão, neve
caindo nas frestas da mágoa, água estagnada sobre estilhaços de vidro, um
espelho que se desmorona dentro do rosto que jamais tornará a ser a minha
imagem. Habito um lugar desencontrado de qualquer estrada, estraçabraçado de
sonsilêncio. Vês? Despalavram-se-me as sequências. Preciso do barulho aquático
que as palavras recortam em torno dos fragmentos de tempo. A carne dos corpos,
alimentando-se de palavras para não morrer, matando as palavras para não
chorar. Corpos. Pedaços de tempo que o tempo vai matando. Desde que se me
tornaram opacos vejo-os por dentro, massas de ossos, nervos e vísceras, e
ouço-os, espa-palaçados, na sua gramática descontínua. Palavras como soldados
incautos, em sentido, perfiladas diante dos abismos do heroísmo, palavras que
se julgam invulneráveis e se lançam, absolutas de infância, para o grande
vazio. Resta-me a terra da palavra, o tom e o toque, a modulação das vozes, os
dedos dentro dos sons, os dedos tornados sílabas, curvados como lágrimas,
cravados na esfera dos olhos.)
Conta-me,
continua a contar-me o que vês. E tu, paciente, amigo, começas a explicar-me
que há um tipo baixinho, alourado, de óculos e nariz empinado, que tenta passar
à frente da fila das pessoas que vão para Nova Iorque e que um latagão atrás
dele o agarra pela lapela. Descreves a cena e eu começo a ouvir a voz agastada
do homem que tentava passar à frente dos outros, uma voz de estopa que
pergunta: sabe quem eu sou? Sabe quem eu sou? Digo-te o que ouço, invejas-me o
ouvido, a piedade das pessoas ergue-se em uníssono neste refrão: ouvido
invejável, ouvido invejável, onde quer que eu vá, gabam-me o ouvido, como às
raparigas feias se gaba o sorriso. Ouvia apenas metade das frases, era uma
distraída deliberada, sem paciência para as conversas de circunstância e sem
capacidade para distinguir os timbres, os seus nós secretos de solidão, ternura
ou desconsolo. Agora todas as vozes me inquietam e mesmo sozinha falo em voz
alta, para preencher este nevoeiro de gesso em que habito. Não sei ser cega,
não nasci cega, não posso esquecer o que perdi, tenho desejo da visão, um
desejo físico, concreto, feito de suores e ansiedade, um desejo sexual,
maculado, absoluto. Nem imaginas como odeio as pessoas que me garantem, com
música de elevador na voz, que é bom manter o desejo, a raiva, a vontade, que
bom, a questão é canalizar positivamente tudo isso». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o
Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT