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O
pulsar lento da vida
«(…)
Foi esperada com muita ansiedade, depois acolhida com manifestações de júbilo.
Repetiam-se pelas igrejas de Lisboa cerimónias de agradecimento por ter querido
voltar, tão genuínas que lhe demonstravam quanto era amada pelo povo. Numa
sagaz tessitura para justificar a decisão de não a deixar partir, a família
real tinha conseguido a adesão do reino. só que o reino não aderia à ideia de
reter a sua Infanta pelas mesmas razões da família real. Devotava-lhe um
carinho respeitoso desde que nascera, mais ainda quando ficara sem a mãe, era
esse sentimento puro que ditava a preocupação com o seu destino, e nenhum
outro. Passados dias, no mês de Fevereiro de 1558, dona Leonor morria em Televuera,
perto do ponto de encontro, um ano depois de João III ter deixado o mundo.
Falou-se de um estado febril de progressão repentina, estranho. A rainha dona
Catarina parecia acusar pouca emoção, mas dois dos outros irmãos não haviam de
resistir muito tempo ao desgosto de a perderem. Carlos V já afastado em San Justo,
num convento onde vivia como no fausto do paço, e Maria da Boémia e Hungria,
partiam também para sempre, pouco depois. A Senhora Infanta andava mais
misteriosa desde aquele encontro, embora não parecesse apanhada de surpresa,
com a notícia. É como se esperasse aquela fatalidade, ainda que no íntimo
alimentasse a esperança de um engano. Nem uma semana tinha vivido a mãe, depois
que se abraçaram... Entrou-lhe uma tristeza imensa, igual vontade de se isolar no
jardim ou na câmara privada onde as aias iam encontrá-la deitada, às escuras.
Porem foi depurando a lembrança daquele momento único, e com a serena imagem
foi vivendo os seus dias organizados como dantes. Uma única vez, depois de
tantos anos, conseguira ver aquela por quem tanto chamara, em menina.
Ficava
ainda mais rica, como sua única herdeira, contudo muito mais pobre de afectos
verdadeiros. Dez anos de luto tinham-lhe arrancado as pessoas mais amadas:
sobrinhos, damas, o padrasto, até o irmão de quem, apesar das diferenças e da
mágoa, guardava respeitosa lembrança. E agora a mãe, que um acaso trouxera e
tão pronto se fora. Mas havia ainda um luto diferente, feito de tristeza e
ausência, que não sendo para sempre, como esperava, era um luto por demais
pesado: o homem que conhecera em estranhas circunstâncias, aquele que lhe
dissera o que tempo algum havia de apagar, vagueava muito longe do reino, do
alcance da sua vista. Havia de voltar enfraquecido, quase indiferente, para
mais lhe acentuar a dor... Se não rasuram o afecto, a solidão e a distância
vão-no atenuando. Elas e demais desencontros que em seu redor se forjam, como
se o caos fosse meticulosamente organizado com vista a um fim preconcebido. Portugal
estava envolto em brumas de confusão e discórdia, em breve sem herdeiro directo
a um trono ameaçado. Avó e neto não se entendiam quanto aos destinos do reino e
à forma de reinar. Ela intolerante em suas convicções, mais fiel a Castela do
que a Portugal. Ele não menos intolerante, com traços inquietantes de personalidade,
a confusão mental aparente a fazer malograr as tentativas de casamento que lhe
eram propostas. Sua Senhoria já somava os desgostos de uma vida inteira, não precisava
de mais apreensões para se lhe extinguirem as forças. O poeta voltou, a pobreza
de meios a endurecer-lhe os modos, a cavar maior distância. Até que caiu no
leito para sempre e chegou ao fim, talvez ao princípio de tudo....
O
Outono da Saudade
Depois
de matar não mata, ainda, a morte. Sou eu que o digo, apesar do ânimo tão frio como
a pedra donde me levanto, a manhã a raiar mais luminosa. Estou no lugar da saudade
aonde sempre torno, às voltas com o sentido desta palavra com mil caras desconhecidas
e ainda assim tão íntimas, que tanto acariciam como trespassam de suave dor. Sinto
que traí a transparência do breve relato mental de há pouco, ao afastar certos
factos que procuro rasurar, negando-os sempre às lembranças. Será possível que ainda
me causem calafrios, depois de tanto tempo? A pretensão de olvidar não os impede
de assomarem, como não evita que doam. E continuam a revisitar-me, a intervalos,
em reposições daquela noite medonha. Tenho agora uma panorâmica do salão de recepções,
discretamente iluminado, depois a chegada da Infanta com os cabelos soltos em camisa
de pano alvíssimo, olhos muito abertos ora para mim ora para o guarda imobilizado
no chão, sem poder dar crédito ao que via. E ainda a chegada das damas, das camareiras
e criados, a nitidez de passos apressados a afastarem-se pelas escadas até ao pátio
interior... Queria a persistência dos melhores momentos, mas são sempre fracturas
de tempo como esta que sobressaem. Não querendo avisto o rosto dos homens antes
tidos como piedosos, de repente façanhudos, em atitudes conformes à vontade de Suas
Altezas, decerto mais da rainha. Sinto ainda restos do medo corajoso daquele
dia quando os surpreendi e este corpo, então ágil, escapava por detrás do reposteiro,
pelos corredores sombrios em silhuetas de sombra prolongadas pela luz hesitante
dos pálidos brandões. Não, não... Estrangulo o mesmo grito angustiado que
não sei de onde sai, aonde me leva. Sei apenas que ainda dói na ausência, sacudido
por múltiplos pesadelos que não deixam descansar em paz e me fazem pingar suor».
In
Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-940-6.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT