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A primeira infância transcorreu tranquila, entre o jardim do sobrado e algumas
longas temporadas nos engenhos, que eram dois: São Pedro e São João. Ficavam no
Recôncavo de Santo Amaro, ao longo do rio Subaé, distante cerca de 72 quilómetros
da capital. A família ia para lá em lombo de mula, a cavalo, ou em carro de
boi, por péssimas estradas. As mulheres e crianças recostavam-se em almofadões
de chita no fundo do coche, ouvindo os gemidos das rodas que rangiam de
cansaço. Como outros engenhos, São João e São Pedro
eram reconhecidos pelas manchas verdes que pela manhã se enchiam dos sons de
cigarras e pássaros: os canaviais. Ao longo dos regueiros que abasteciam a
casa, as borácicas, com suas flores amarelas, alegravam as margens. São João se
alojava num pequeno vale, cercado por mata densa. Um renque de vinte coqueiros
finos marcava a vista da casa principal. Sua única curiosidade era o alpendre
com nobres colunas toscanas, que fazia as vezes de varanda. À direita, brilhava
um grande açude onde as vacas bebiam água. A família ocupava um núcleo com uma
sala central, e diversas alcovas ao seu redor. De um lado da entrada, ficava a
capela que trazia à frente a tabuleta Viva Nossa Senhora das Graças, devoção dos
Borges Barros. Do outro, ficava o quarto de arreios, destinado aos hóspedes.
Num quarto contíguo à sala, Domingos recebia empregados e amigos. Recebia
também cativos fugidos ou maltratados pelos vizinhos, a quem dava protecção.
Foi padrinho de muito escravo com marcas de suplícios e se colocava à
disposição para facilitar as negociações com os senhores antes que ele optasse
por tirar cipó. Ou seja, fugir para o mato.
Da
janela ou da varanda de engenhos como este, Luísa cresceu vendo o sol se
espalhar sobre os partidos, esquentando as folhas de cana ainda pingando de
orvalho. Dona Maria do Carmo, a poderosa senhora, dava o santo e a senha dentro
da casa. Mulheres mais jovens e gentis, escravas ou não, provocavam logo seu
mau humor e esconjuros. Mesmo jovem, já se sentia venerável por ter de dar a bênção
a tanta gente: escravos, crianças, vizinhos. Essa necessidade de tanto abençoar
a envelhecia e lhe dava a consciência de sua precoce respeitabilidade. Sabia
que tinha que ser modelo de pureza, a quem interessava somente o bom governo da
casa, a ordem e a economia. Evitava desperdícios, cuidava para que os escravos
fossem bem alimentados e vestidos e olhava as crianças quando as mães recebiam
serviços muito distantes. Zelava, pessoalmente, para que nada faltasse a
Domingos e Luísa. Muito religiosa, dona Maria do Carmo tinha empenho em que bem
se ensinasse os meninos a rezar. As mucamas, as rapariguinhas viviam também na
casa-grande sob suas vistas, ocupadas cosendo roupas grossas e sacos para o
açúcar. À volta da mesa de costura, a senhora aproveitava para lhes contar
histórias extraídas da Bíblia Sagrada, que elas ouviam com resignação. Maria do
Carmo presidia também à distribuição das rações. Cabia a ela a missão de
controlar as refeições do marido e dos trabalhadores; cuidar do bom
funcionamento da cozinha e da dispensa; manter os trajes engomados, as camas
macias e receitar remédios caseiros.
Luísa
e Domingos se misturavam às crianças livres e escravas do engenho para brincar.
Pião e papagaio entre os meninos. Danças de roda, vestir o menino Jesus e baptizados
de bonecas, para as meninas. O pequeno Domingos aprendia a ter pontaria no
bodoque ou a assobiar como os pássaros. Nos terreiros e pomares, as crianças
subiam em árvores para comer fruta verde, brincavam de soldado e faziam
teatrinho. A molecada tomava até três banhos de rio por dia. Caindo a tarde, a
família liderada por Domingos se reunia para observar o movimento do engenho: a
chegada do gado que, deixando as pastagens, se recolhia aos currais, e das
últimas viagens de cana ou de mantimentos provindos da roça; a contagem e a
revista dos escravos; a chegada de tropas de cavalos carregados de canastras.
Luísa e seu irmão tudo acompanhavam da varanda. Descia a noite sob a melodia
simples e monótona de versinhos, canto da gente da senzala. Na sala, jogavam-se
prendas, o queijo do reino sobre a mesa. Uma escrava idosa vinha, então,
colocar sobre a canastra a lamparina, repetindo as palavras usuais: louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo! Sentavam-se todos à volta da mesa e começava a
conversa animada. Nela, os assuntos predilectos eram a lavoura, as chuvas e a
estiagem. A política era discutida depois da leitura do jornal Idade d'Ouro
do Brazil». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora
Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.
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